Repórter do UOL encara maratona de pubs no trajeto da prova em Londres
Rodrigo Bertolotto
Do UOL, em Londres (Inglaterra)
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Rodrigo Bertolotto/UOL
1ª parada: O pub tem uma cerveja chamada também Sherlock Holmes, que é bom não exagerar
Não é embriaguez do repórter: a maratona olímpica faz a cabeça dar voltas, e a pessoa vê sete palácios de Buckingham e seis Big Bens. O UOL experimentou percorrer o trajeto dos maratonistas pelas ruas londrinas, mas só mudou o sistema de hidratação durante a prova. No lugar de tomar correndo litros de isotônicos, o fundista jornalista foi obrigado a parar em todos os pubs à beira do itinerário que leva à medalha de ouro.
Bem longe do recorde olímpico de 2h06min32s para a extensão de mais de 42 quilômetros, a reportagem demorou 8h50min02s para cobrir os cerca de 13 quilômetros do circuito escolhido pelo Locog. A intenção do comitê organizador de Londres-2012 de dar três voltas em um mesmo traçado foi exibir os cartões postais da capital, sem estrangular o trânsito em dois domingos (as mulheres correm no próximo, e os homens disputam no outro a última competição dos Jogos).
A fórmula encontrada também ajudou este repórter. Já imaginava ter de trapacear como os maratonistas faziam antes dos fiscais de prova e das TVs: pegar carona em bicicleta, táxi, metrô e até carruagem para passar a linha de chegada. Não precisou.
A disputa foi longa, embaixo de uma garoa persistente e com pelotões de turistas retardatários no caminho. Mas o objetivo foi cumprido com um mínimo de precisão jornalística, graças à determinação de só tomar um copo médio (0,28 litro ou half pint para os locais) em cada um dos 13 pubs no percurso.
A largada aconteceu no The Mall, a avenida das cerimônias reais e dos desfiles militares, rigorosamente às 11h, hora em que abrem os pubs e hora em que começarão as maratonas oficiais.
O primeiro trecho parecia fácil, afinal, beirava o Saint James Park e não havia nenhum boteco à vista. O desafio mesmo foi ultrapassar os forasteiros que fotografavam esquilos e cisnes no parque e queriam ver na vizinha residência da rainha Elizabeth a tal troca daquela guarda de capacetes peludos, que acontece às 11h30 todos os dias.
Não estou acostumado a beber de manhã, mas depois da primeira curva surgiu na minha frente o The Sherlock Holmes. Dentro, com sua cerveja de mesmo nome na mão, brindei com o fazendeiro Andrew Schwier, que produz leite, mas prefere algo mais forte às 11h20. Ele estava a caminho do vôlei de praia que acontece nas redondezas, na Horse Guards Parade. "Puxa, queria ter um trabalho como o seu", foram as palavras de incentivo do fazendeiro voleimaníaco.
Duas curvas mais e, diante do Big Ben, encontrei a próxima parada. Oferecendo desde 1873 uma "cálida hospitalidade", o St. Stephen Tavern tem estilo vitoriano, candelabros, espelhos jateados, retratos de ex-primeiros ministros na parede e uma cerveja com muito lúpulo para refrescar. Na saída, a costumeira garoa londrina se apresentou, e a vontade era de continuar no aconchego do bar.
A parte seguinte da prova era a mais atlética: um retão à beira do rio Tâmisa de mais de três quilômetros. Nativos fazendo cooper, jogging ou qualquer outra palavra inglesa me ultrapassavam facilmente. No caminho, vários restaurantes indianos, cafés italianos e franquias de fast food, mas a orientação era só entrar nos típicos pubs, locais que centralizam a vida comunitária dos ingleses mais do que as igrejas e os mercados.
Já passava de três horas de prova, e a fome apertava, multiplicada pelos aperitivos de cevada e a caminhada. A tão esperada reposição de energia aconteceu finalmente no The Black Friars, bar em estilo art nouveau erguido em 1873 no lugar de um convento dominicano.
Os críticos falam que nos pubs a bebida tem gosto de desinfetante e a comida parece feita de papel, com seus purês e molhos com aspecto tão obscuro quanto a iluminação peculiar. Escolhi um bife com fritas para não errar e fico ao lado de um vitral religioso para ver bem o que tem no prato. Hoje em dia, a Inglaterra dos chefs Jamie Olivier e Nigella Lawson tenta melhorar a fama da culinária bretã. Na última década até surgiram os "gastropubs".
Com a barriga forrada, parti para o trecho mais tortuoso: as ruas e vielas da City, o distrito financeiro de Londres. O corpo pesava mais, e o ritmo ia mais lento. Próxima pausa foi no pub Lord Raglan, nome de um sujeito que perdeu o braço na batalha de Waterloo, onde Napoleão Bonaparte caiu do cavalo. Coincidência ou não, o hipismo olímpico ocupava as TVs do local com Zara Phillips, neta da rainha Elizabeth, derrubando balizas e deixando a Grã-Bretanha com a medalha de prata.
Uma garçonete polonesa me serviu uma cerveja tcheca. Apesar da decoração antiga, esse segue o modelo atual de bar: TV com programação esportiva, música alta e máquinas de caça-níquel. No mezanino, o frequentador pode jogar sinuca e dardos, modalidades típicas de pub que têm federação por lá e são até televisionados.
Na saída, a chuva era forte, e a falta de um guarda-chuva foi sentida. O jeito foi esperar e ver o desempenho atlético diminuir (já eram cinco horas de prova). O aguaceiro passou, e segui. Ultrapassei a estátua do general Wellington na esquina na ruas Prince e Cornhill e não peguei o desvio para entrar no tradicional George and Vulture, onde os literatos Jonathan Swift e Charles Dickens tomavam seus porres.
A sexta parada foi no Counting House, banco do século 19 transformado em pub. O jogo de hóquei feminino entre Grã-Bretanha e Coreia do Sul corria solto enquanto tomava de uma talagada as notas cítricas e florais da cerveja Chiswich.
Na sequência, o destino foi o Lamb Tavern, com uma placa da prefeitura na frente avisando que a rua será interditada para os maratonistas passarem. Já eram as 16h30, e os banqueiros e financistas da área faziam sua happy hour acompanhando a cerimônia de medalhas da ginástica olímpica. Beberiquei uma London Gold e foi atrás do meu ouro pessoal.
Passei pela rua Pudding Lane e me deu uma fome. Mas foi na cerveja que eu cai de novo no pub The Hung Drawn and Quartered, cheio de referências aos enforcamentos e matanças da vizinha Torre de Londres. Um aviso em um quadro dizia "A beleza está nos olhos de quem segura a cerveja", e na TV a russa Maria Sharapova fazia caras e bocas durante jogo contra uma tenista local.
Nem 50 metros adiante nova tentação. O All Bar One é um "hockey pub", com displays em tamanho natural das jogadoras da seleção britânica. Esse foi o trecho mais desafiador, afinal, no mesmo quarteirão apareceu como uma visão o The Liberty Bounds, com uma bandeira argentina no balcão, mostrando a tolerância local com os antigos inimigos.
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Os 13 pubs percorridos durante a "maratona":
1º - The Sherlock Holmes
2º - St. Stephen Tavern
3º - The Black Friars
4º - Lord Raglan
5º - George and Vulture
6º - Counting House
7º - Lamb Tavern
8º - The Hung Drawn and Quartered
9º - All Bar One
10º - The Liberty Bounds
11º - The Walrus and The Carpenter
12º - All Bar One
13º - O`Neill
Meus passos começavam a ficar cambaleantes para atravessar o maior declive da maratona, a descida para a Lower Thames Street, onde está o pub The Walrus and The Carpenter, com suas salsichas premiadas e sua cerveja Tribute.
O pé já estava latejando e as pernas pesando quando encontrei um novo duelo com o álcool. Pensando já em uma noite de sono, pedi uma beer norte-americana Blue Moon, e a garçonete romena exagerou na dose e trouxe meio litro dela. Foi uma provação, não podia fraquejar. Os remorsos da ressaca moral do dia seguinte rodavam minha mente. O último gole veio acompanhado do primeiro soluço que me escoltou até o próximo bar.
Já me imaginava atropelado por um ônibus da "família olímpica", levando colegas de profissão de um estádio para o outro, quando encontrei de novo um pub de nome All Bar One. Será que errei o caminho? Será que estou vendo dobrado? Não, o garçom me explicou que é uma rede de pubs. Ufa. Dentro, pedi uma cerveja espanhola Estrella para iluminar o sprint final e vi o futebol feminino do Brasil ser derrotado pela equipe anfitriã. O gol no primeiro minuto causou vibração incrível no bar.
Sai do local já visualizando a fita da linha de chegada quando a 50 metros do final aparece um irlandês para me atrapalhar. No lugar do padreco lunático que segurou Vanderlei Cordeiro de Lima na maratona de Atenas-2004, o pub O`Neill e suas bandeirolas da Irlanda apareceu no meu caminho. Foi a 13ª parada no trajeto e tomei uma Guinness para pensar que estou batendo algum recorde bizarro.
Com o andar trôpego, a língua com uma textura atoalhada e a garganta amarrando, terminei a minha maratona particular com suas regras bem particulares na mesma cidade que inventou a distância para a maratona olímpica. Se engana quem pensa que os 42,195 quilômetros é a distância entre as cidades de Maratona e Atenas, na Grécia. Na verdade, esse era o espaço exato entre a largada no palácio de Windsor e a chegada ao estádio olímpico na Olimpíada de Londres-1948. Se os ingleses inventaram tantos esportes e tantas regras, porque não inventar a maratona etílica na terra deles?