Esporte inglês "fracassado" perde seu templo e o verão para a Olimpíada
Rodrigo Bertolotto
Do UOL, em Londres (ING)
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Rodrigo Bertolotto/UOL
Crianças jogam críquete no Regent`s Park no centro de Londres; esporte não tem mais ampla popularidade
Os arqueiros olímpicos tomaram o templo do mais inglês dos esportes, o críquete. O estádio Lord`s Cricket Ground, aberto em 1814 e local de embates internacionais desde 1884, entrou na lista de locais de competição dos Jogos e obrigou os “cricketers” a migrarem bem no meio de sua temporada, que vai de maio a agosto na Inglaterra para aproveitar o sol do verão antes que o frio e a chuva castiguem os gramados pelo resto do ano.
A equipe nacional inglesa teve que marcar seus encontros contra a África do Sul na cidade de Leeds (320 km ao norte de Londres), enquanto os praticantes amadores se dirigiram ao vizinho Regent`s Park para bater uma bola.
O críquete já foi olímpico, mas isso faz parte das páginas mais bizarras dos Jogos. Em Atenas-1896, estava no programa e não aconteceu por falta de competidores. Em Paris-1900, finalmente foi disputado, mas só por dois países depois que Holanda e Bélgica não levaram suas equipes. Os ingleses bateram o time da França, formado na maioria por funcionários da embaixada britânica em Paris. Assim não vale.
Nunca mais o críquete foi aceito pelo COI e muito dificilmente será no futuro – ainda mais agora que seu filhote norte-americano, o beisebol, perdeu seus anéis olímpicos
Que tal esperar cinco dias de jogo e, ao final, não saber o resultado final da partida? Assim é o críquete. “O problema do críquete é que ele é chato e demorado para quem assiste. Os dirigentes são muito apegados à tradição. Isso atrapalhou a globalização da modalidade”, analisa o indiano Rohan Shedjale em intervalo de seu treinamento de rebatidas em uma baia montada no extenso gramado do Regent`s Park, centro de Londres.
Há versões mais modernas e mais curtas: o one-day-cricket e outro em que o jogo dura “apenas” três horas e meia.
Rohan defende as balizas atrás dele com seu bastão. Quem lança a bola é o adolescente de origem paquistanesa Irfan Sadiq. “Prefiro treinar aqui que ficar no sofá vendo a Olimpíada, me divirto bem mais”, afirma o estudante no dia em que a Grã-Bretanha ganhou cinco ouros.
O críquete parece criar uma fascinação em quem joga. Os ingleses falam que mais que um jogo é um código, e mais que um enfrentamento é um diálogo. Quem vê o jogador típico pode confundi-lo com um barão passeando por suas terras. Ele veste branco de cima a baixo com suéter impecável e pisa com sapato envernizado na grama aparada.
Muitos literatos eram apaixonados pela modalidade. “Tendo a acreditar que o críquete é a melhor coisa que Deus criou na Terra. Certamente é melhor que o sexo”, descreveu o dramaturgo Harold Pinter (1930-2008), que descobriu o esporte durante os bombardeios alemães a Londres na Segunda Guerra Mundia,l quando o jogo era seu momento de liberdade dos abrigos antiaéreos.
Já H.G. Wells (1866-1946), autor de livros como “A Máquina do Tempo”, “O Homem Invisível” e “A Guerra dos Mundos”, foi influenciado pelo pai, que era jogador profissional.
Criador do detetive Sherlock Holmes, Arthur Conan Doyle era um rebatedor temido que mostrou suas habilidades até no Lord`s Cricket Ground. Como jornalista, Conan Doyle cobriu a primeira Olimpíada de Londres, em 1908, mas o assunto que gostava mesmo de escrever nas publicações da época era o esporte dos bastões.
Outro “cricketer” das letras foi o irlandês Samuel Beckett. O dramaturgo que revolucionou o teatro do século 20 defendeu a Universidade de Dublin na juventude e ganhou sua primeira citação impressa justamente no Wisdem Cricketers` Almanack, a bíblia do esporte.
Os ingleses inventaram o esporte mais popular do mundo, o futebol, mas tiveram muita dificuldade para exporta o críquete fora do perímetro do antigo Império Britânico. Os Estados Unidos criaram variedades dele, beisebol e softball, que depois espalharam pelo Caribe e pelo Oceano Pacífico até o Japão.
No Brasil, o críquete chegou reduzido a um esporte de rua para a molecada com nomes como “taco”, “bets”, “tacobol” ou “bete-ombro”, tendo as balizas improvisadas sobre o asfalto com garrafas pets, latinhas ou armação de gravetos.
Mas na Inglaterra segue sendo um esporte de cavalheiros sobre grama. Com chuva o ano todo, a Grã-Bretanha é um grande gramado. Filósofo inglês e criador empirismo, Francis Bacon sentenciou no século 17: “Nada é mais agradável para os olhos que uma grama verde bem aparada”. Para aproveitar a relva, os ingleses inventaram vários esportes “outdoor” – já os norte-americanos criaram mais as modalidades “indoor” (basquete e vôlei são os maiores exemplos, e os britânicos penaram para formar equipes olímpicas para eles em 2012).
Futebol, golfe, tênis, pólo, hóquei e croquet são alguns deles. Croquet? O que isso? O croquet foi esporte olímpico em Paris-1900 também e só. É aquele jogo em que o competidor tem de dar martelada em uma bola de madeira sobre a grama para que ela passe no meio de aros cravados no chão.
No Brasil, é praticado principalmente pelos idosos da comunidade japonesa sob o nome de gateball ou getorobo. Pois, na Inglaterra há federação e campeonato nacional para essa modalidade que já teve seus tempos de glória: o pintor francês Edouard Manet retratou uma partida, e Lewis Carroll o incluiu no livro “Alice no País das Maravilhas”. Os adeptos falam que é uma mistura de xadrez, sinuca e golfe. Os irônicos dizem que é uma diversão para “solteironas e vigários”.
No caminho inverso, um esporte de origem inglesa e sobre a grama volta para a programação olímpica nos Jogos do Rio-2016. O rúgbi deixou o panteão de esporte da ilha sem a chancela olímpica.
Os muito fanáticos pelo futebol que me perdoem, mas os dois melhores esportes criados pelos ingleses não saíram nem de suas fronteiras. E são duas modalidades gastronômicas: o pancake race da cidade de Olney (corrida segurando panela com panqueca, com direito a duas voltas na massa durante o percurso) e o rolamento de queijo de Gloucestershire (acontece em colina abaixo em Copper`s Hill e é item essencial é um queijo redondo Double Gloucester).
Para quem pensa que Olimpíada é coisa séria (patrocinadores e dirigentes lucram com essa ideia), esse lado gincana dos esportes mostra que ele nada mais é que “o mais importante dos assuntos desimportantes da vida”.