UOL Olimpíadas 2008 Especiais
 

Em montagem, Kaio Márcio, Zé Marco, Ricardo e Emanuel como cangaceiros

Fotos da natação e vôlei de praia na Paraíba

25/07/2008 - 07h03

"Cabras" saem dos eixos e acabam no Olimpo

Rodrigo Bertolotto

Em João Pessoa (PB)

Não é só a cana. O futebol é uma monocultura poderosa. Tão ou mais que o sol incendiário do meio-dia paraibano. Mas tem uns sujeitos que desafiam tanto a bola de fogo como a de couro para treinar por lá outras disciplinas. E em seus retornos triunfais, ganham comendas e discursos inflamados dos políticos locais: “São heróis do povo desta Paraíba, que entra no universo das vitórias.”

Contudo, essa crônica deve retroceder no tempo, para uma época em que o futebol e a cana se confundiam. Eram os campeonatos entre usinas. Em meio do capinzal açucarado dos canaviais, os campos de terra viram surgir seis décadas atrás Zeca, que depois jogou no Náutico, Santa Cruz, Fluminense e acabou a carreira de futebolista em um clube de João Pessoa. Lá pediu a mão de uma meninota.

Dessa união, nasceu Zé Márcio, que inventou de jogar futebol dentro da água. Mas não pense que foi em algum açude. Foi dentro de uma das duas piscinas de dimensão olímpica. E esse Zé virou jogador de pólo aquático. De tão bom e sem rivais locais (um único time adversário, saído da outra piscina local), ele foi jogar em São Paulo e na seleção nacional entre 1979 e 1984.

Quando Zé Márcio teve um filho, o moleque completou a transição: quis continuar na água, mas nada de bola. E do pai herdou metade do nome: Kaio Márcio, que vai borboletear em Pequim atrás de um prodígio nos 100 m e 200 m. Ele, junto com o paulista César Cielo e o fluminense Thiago Pereira, é um dos curingas nacionais tentando se encaixar no pódio entre os reis australianos, os astros europeus e os ases norte-americanos, tendo à frente sua excelência aquática Michael Phelps.

Ele se preparou para a Olimpíada na mesmíssima piscina em que começou nas braçadas: o clube Cabo Branco. Descendo uma lombada, no bairro seguinte fica a praia de mesmo nome. Lá a história encontra outro Zé e outra modalidade, o vôlei de praia. O agora secretário adjunto de Esporte, Zé Marco, vive como seus pais, também foram funcionários públicos nessa João Pessoa que funciona na base do funcionalismo.

Rodrigo Bertolotto/UOL

Rodrigo Bertolotto/UOL

Pegador de bolas descansa em intervalo do treino das duplas juniores do vôlei de praia em Cabo Branco, bairro de João Pessoa

Mas, antes da repartição, esse Zé foi medalhista prateado em Sydney-2000, fazendo parelha com Ricardo. Primeiro, ele atraiu o parceiro para treinar na Paraíba em 1996. E o baiano apreciou tanto que acabou levando a família para lá. Mesmo após a aposentadoria de Zé Marco, Ricardo permaneceu e ainda chamou Emanuel para se estabelecer por lá, aproveitando a base e o apoio do estatal Zé Marco. Resultado: Ricardo e Emanuel foram ouro em Atenas-2004 e partem para a China atrás do bicampeonato olímpico.

A cidade virou pólo do esporte. O técnico Cajá e o preparador Rossine Freire, pessoenses da gema, são referências nacionais. Em meio à zoeira das ondas e dos coqueiros, as duplas juvenis serpenteiam à milanesa para praticar a recepção do esporte. “Vamo comê areia, pessoal”, caçoa o treinador.

Mesmo em terreno líquido e arenoso, os paraibanos provaram ter raízes tão profundas que tocaram técnicos e parceiros para lá e arrumaram um atalho para o Olimpo que não passasse pelo eixo Rio-São Paulo.

Kaio Márcio cresceu um gordinho asmático, mas foi só precipitar na água que se transformou em rapagote lomboso. Além da figura, ele também sofre uma mudança de ritmo. Fora da piscina, é devagar no falar e no andar. “Meu irmão sempre me pergunta como consigo vencer com esse jeito molenga. Respondo que é para guardar energia”, Molhado, ele se mostra tão expedito no vai-e-vem que detém a marca mundial dos 50 m borboleta em piscina curta.

Mas foi com os dois ouros no Pan carioca de 2007, nos 100 e 200 m no mesmo estilo (provas que competirá nas Olimpíadas), que ele ganhou direito a girar por João Pessoa em carro aberto e com batedores. O que não foi exatamente um prêmio para um camarada acanhado, arredio e tão avesso aos píncaros da glória. “Não gosto muito de aparecer. É uma sensação diferente, mas já que estamos ali”, confessa o avesso aos píncaros da glória que desfilou pela avenida Epitácio Pessoa, ex-presidente brasileiro e tio do político que dá nome à capital paraibana.

O paranaense Emanuel e o baiano Ricardo também passearam em veículo de bombeiros após o ouro olímpico. Cena que deve se repetir após os Jogos da China. O último treino deles na praia de Cabo Branco foi no remoto dia 18 de abril. Depois eles competiram quase na beira do mundo. Xangai, Praga e Croácia, lugares longe como o diabo. Tiveram até que jogar encobertados para espantar o frio.

Nada tão distante do sol fagulhante e do vento abrasador da Paraíba, que só permitem treinos na aurora e no ocaso do dia. Às 4h30 já tem sol pleno na cidade mais oriental do continente americano, enquanto o Brasil ainda está nas trevas. A carioca Rosane Carneiro, que treinou Kaio Márcio no Flamengo quando ele era adolescente, se queixa de tanta luminosidade. A sintonia dessa época o paraibano queria recuperar quando convocou a treinadora para morar em João Pessoa. “Aqui é pacato demais. Para não entrar no tédio total tem que dispor de um kit essencial com TV a cabo, Internet banda larga e muita música no computador”, reclama Rosane.

A viagem de seu apartamento até a beira da piscina não dura mais que dez minutos. Kaio Márcio arrendou as piscinas do tradicional e decadente clube (fundado no coronelista ano de 1915). “A manutenção era muito ruim. Eu tinha de trocar de piscina, porque sempre uma estava com a água verde de tanto musgo”, relata o nadador, que agora banca o cloro e a filtragem e garante os 300 alunos que freqüentam as aulas.

Um deles atravessa a raia em que Kaio Márcio faz uma série rápida. “Rafael, sai daí, bonitão. Vai ser atropelado”, grita um professor. O olímpico nem percebeu a presença, envolto na espuma de suas braçadas.

Longe de toda a equipe nacional, o paraibano está feliz. “Rapaz, me dou melhor treinando sozinho. Posso me focar no tempo, não fico olhando a raia do lado e querendo chegar primeiro que os outros”, explica o paraibano de 23 anos que mora com os pais e o irmão Kaique. Outro motivo é o apoio oficial. “Tenho apoio de prefeitura e do Estado. Cada um de um partido diferente. Mas eu procuro não associar minha imagem com nenhum”, dá a receita para conviver com o assédio.

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