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Base de Cielo, pacata Auburn vira arma contra jejum de ouro olímpico da natação brasileira

Giancarlo Giampietro

Em Auburn (EUA)

O caminho para o primeiro ouro olímpico da natação brasileira pode estar na saída 57 da rodovia interestadual 85 (I-85), que liga a Virgínia ao Alabama, no sudeste dos Estados Unidos. Essa ramificação leva à minúscula Auburn, e é lá em que está baseado César Cielo, 21, maior aposta nacional para as piscinas da arena Cubo d'Água, em Pequim.

Auburn tem 51.906 habitantes, que vivem em ritmo pacato em uma área de 102,5 km². Um de seus principais atrativos é a universidade que leva o nome da cidade, uma instituição estadual que está entre as mais conceituadas tanto no esporte como na área acadêmica em território norte-americano.

No departamento esportivo, a equipe de natação concorre anualmente ao posto de melhor do país, e Cielo atuou como grande figura no cultivo desse status desde sua inscrição no segundo semestre de 2005. Em uma relação de ganho mútuo, o nadador evoluiu sob a orientação da universidade e deu sua retribuição em resultados: foram dez títulos nacionais e 13 de conferência.

Auburn apresentou uma combinação certeira para incentivar o desenvolvimento do nadador. Primeiro, pela estrutura geral que proporciona ao atleta. Segundo, pela oportunidade de competir de modo regular contra boa parte da elite da natação mundial e promessas norte-americanas. "No Brasil, às vezes parece que tudo é difícil. Aqui a competição tem sempre o melhor, com concorrentes e piscina do mais alto nível, o tempo todo", afirma o brasileiro. A universidade é uma das poucas do país a oferecer um conjunto de piscinas olímpicas cobertas e ao ar livre.

AP

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Cielo aproveita estrutura técnica e cresce com rotina de estudante-atleta

São cinco técnicos disponíveis para instrução geral - de treinos com o chefe da comissão, Richard Quick (que comandou a equipe norte-americana em seis edições dos Jogos), até um trabalho personalizado com o ex-nadador olímpico australiano Brett Hawke. Para o atleta, contudo, o mais relevante é o aparato de treino. "Em relação à condição dos técnicos, o Brasil não fica atrás. O que faz diferença é a infra-estrutura."

Dois anos e meio após a chegada a Auburn, o brasileiro virou o principal nome do programa, até anunciar o fim de sua carreira universitária para se tornar profissional. Mas como será agora o retorno ao movimento de São Paulo, onde o paulista de Santa Bárbara viveu como competidor do Pinheiros? "Fico com medo de voltar, pegar trânsito e me estressar com coisa que não precisa. Não quero nenhum tipo de desvio", diz.

Fora das piscinas, a experiência como estrangeiro, distante da atenção dos pais, também foi crucial para o amadurecimento do brasileiro. Especialmente em uma cidade que vive para a universidade e praticamente não apresenta distrações extracurriculares. Dividir uma churrasqueira com os vizinhos, alugar filmes e esporádicos jogos de golfe (os melhores campos estão na vizinha Opelika, ainda mais quieta) são as atividades predominantes nos raros momentos de folga.

Exigentes no controle do currículo escolar dos atletas, na tentativa de evitar que eles tenham apenas um curso de fachada para garantir a bolsa, as autoridades universitárias contribuem para a adaptação. "Eles são bem espertos com isso e agendaram muitas aulas no começo. Aí não teve jeito, fiquei com a cabeça cheia de trabalho."

"Foi difícil vir para uma cidade parada, sem conhecer ninguém, sem falar a língua direito. Até pensei em ir embora, não estava feliz. Mas quando os resultados vieram, vi que o preço não importava", diz Cielo. "Hoje me considero mais forte por ter lidado com isso. Era um cara que sempre descarregava tudo na minha mãe, e aqui não dá mais. Aprendi que não adianta esperar muito dos outros. Sempre ficava à sombra de outras pessoas. Hoje não tenho problema em buscar o que quero, mesmo nas coisas mais simples, como pedir um maiô para o meu patrocinador."

Veterano da equipe e primeiro companheiro a dividir apartamento com Cielo na cidade, o norte-americano Scott Goodrich, 21, se recorda do período de dificuldade. "Quando ele chegou aqui, tinha apenas 18 anos e faltava consistência. Com o passar do tempo, ficou muito mais profissional e maduro", afirma. "A nossa rotina é boa para isso. A cidade é muito aconchegante e facilita o entrosamento. Toda a equipe é muito próxima", completa.

Cielo cursa administração de empresas e espanhol, após uma breve passagem por criminologia - formação que não teria validade no Brasil, devido à diferença das leis entre os países. Independentemente dessa aventura com disciplinas tão distintas, a decisão de partir para a carreira profissional em ano olímpico, aquele que rende mais dividendos aos atletas nacionais, deixa seu futuro acadêmico nebuloso, qualquer que seja a graduação escolhida. Ele pode retornar, já que chegou a um acordo com a diretoria para manter sua bolsa.

A saída de Auburn está marcada para o fim de abril, uma semana antes do Troféu Maria Lenk, no Rio de Janeiro. Essa é a primeira escala do nadador em busca de maior reconhecimento no mercado esportivo. "Estou em uma situação boa para procurar algum tipo de patrocínio. Todo atleta sabe que o ano olímpico é o ápice, que 2009 seria mais difícil."

O jovem nadador espera que o agito só venha para valer em setembro, após os Jogos chineses, para o caso de conseguir o ouro. Um feito de que seu empresário, Fernando Scherer, e o ex-mentor Gustavo Borges se aproximaram, degraus abaixo no pódio. "Quando se está bem na piscina, tudo em volta também fica bem", diz. Ainda que o que esteja ao redor sejam caneta e papel, ruas silenciosas e bandeiras norte-americanas à frente de cada casa, uma igual à outra.

Publicado originalmente no dia 9 de abril de 2008

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