UOL Olimpíadas 2008 Especiais
 

Garotos batem bola na frente de grafite com Bahia, Vitória e Popó

Fotos do boxe baiano

21/07/2008 - 07h01

Bahia encarna Cuba para vingar nos ringues

Rodrigo Bertolotto

Em Salvador (BA)

Troque a rumba pelo axé music. Mude de Havana para Salvador. O cenário se repete: na academia de boxe com paredes lascadas, saco de pancada remendado, halteres enferrujados e espelhos empapados de suor. Lá, rapazes mulatos e negros trocam sopapos. Pela frente um sonho olímpico e, quem sabe, uma carreira profissional, o que para os cubanos exige o ritual de deserção.

“A ginga está no sangue do baiano em qualquer luta, não só na capoeira”, decreta Luiz Dórea, um investigador de polícia que faz vida dupla de técnico da equipe olímpica. Dórea usa suas técnicas e contatos da delegacia para vigiar também seus pupilos. “Se algum se mete em briga, fico sabendo, e esse cara não treina mais comigo.”

Chances não faltam para um quebra-pau, afinal, os pugilistas vivem em alguns dos subúrbios mais violentos de Salvador, onde sempre há um valentão querendo provocar o garoto com título de campeão. “Um traficante do meu bairro tentou dar um muro nas minhas costas, mas me esquivei e segui meu caminho”, conta Robenílson Vieira, que lutará em Pequim.

Como no Rio os pitboys são a versão arruaceira dos praticantes de jiu-jitsu, em Salvador muitas pancadarias de rua testemunham jabs, diretos e guardas altas como se os briguentos estivessem em um ringue. “O boxe é discriminado, mas, para mim, é um trabalho, e a academia é nossa fábrica. Quem boxeia na rua é vândalo que fica fingindo”, sentencia o peso-mosca, que antes dos ringues ocupava a posição de meia-direita do Vitória.

Por outro lado, foi o temperamento violento que fez outro olímpico, Robson Conceição, entrar no boxe empurrado pela mãe que não agüentava tanta confusão. “Brigava muito na rua, mas acabava apanhando da minha mãe, que me levou para o boxe”, relata o pena.

Rodrigo Bertolotto/UOL

Rodrigo Bertolotto/UOL

Pugilista dá socos no ar na academia "Mão de Pedra", propriedade de Popó, que atualmente é secretário municipal de Esportes

“Ele tinha um jeito aguerrido de fechar os olhos e descer o braço. Mas aí fiz a mistura, como se faz uma feijoada: o estilo aguerrido daqui com o boxe bailado de Cuba. Essa é nossa diferença”, define Dórea.

Ele aplica um treino marcial para seus pupilos. Treino técnico de três horas pela manhã e corrida à tarde de segunda a sábado. No circuito que percorrem até o dique do Tororó três quituteiras e seus tabuleiros são uma tentação a mais para os atletas que têm de controlar o peso. “Faz uns dois anos que não como um acarajé. Não lembro nem o gosto”, brinca Robson, que é um dos hóspedes do alojamento improvisado no andar de cima da academia. A geladeira pifada não conserva o leite da dieta esportiva, e a janela sem cortina os acorda cedinho.

O boxe nacional tem uma única medalha olímpica, um bronze nos Jogos de 1968 conquistado pelo paulista Servílio de Oliveira. Hoje, porém, o pugilato é eminentemente baiano: dos seis representantes em Pequim, quatro são baiano, sendo que o meio-pesado Washington Silva nasceu em Diadema, mas cresceu em Cruz das Almas (BA). O único sem ligação com o Estado é Myke Carvalho, que vem de Belém, pólo atualmente coadjuvante dos ringues patrióticos.

Os baianos também recebem o incentivo de seus campeões mundiais no profissionalismo, Acelino “Popó” Freitas e Valdemir “Sertão” Pereira. Popó, aliás, virou, além de secretário municipal de Esportes, é o chefe da empresa Boxe Brasil sempre tentando os amadores com contratos profissionais.

Ele já tem quatro lutadores a seu serviço, mas bem que gostaria de contar com Pedro Lima, único ouro nos ringues do Pan do Rio, em 2007. Sem vaga olímpica, Pedro já recebeu três propostas de Popó, mas jura fidelidade a Dórea, que também opera com profissionais. Doréa, inclusive, fez as vezes de manager de Popó, mas os dois atritaram quando o pugilista alçou vôos internacionais.

Os dois têm ainda uma relação de aproximações e distanciamentos. As academias de Popó, chamadas “Mão de Pedra”, servem de fonte de talentos para serem lapidados na academia Champion, criada por Dórea em terreno onde a família dele tinha uma escola (ele mora ao lado e alugou a casa em frente para uma igreja evangélica).

Mas, quando Paulo Carvalho, mosca-ligeiro baiano que treina em São Paulo, chegou para ver a família em Salvador e foi treinar com Dórea, criou ciúme do outro lado. “Ele me deu um pontapé. Eu tirei ele da bandidagem e depilei ele [sic, ele queria dizer lapidei]. Agora, ele me ignora”, desabafa Luiz Cláudio Freitas, irmão mais velho de Popó e técnico a frente da academia na ladeira do Jacaré. Ele só se acalma quando fala de seu filho, Vitor Jones. Promete que será o herdeiro do clã Freitas.

O boxe profissional, contudo, está bem longe de virar uma indústria de entretenimento como é a do axé. Fora algumas noitadas no ginásio Balbininho ou no Othon de Ondina, os pugilistas locais ainda precisam da projeção nacional ou internacional para se sustentem no profissionalismo. As bolsas estatais oferecidas aos amadores, na maioria das vezes, é um dinheiro mais seguro que as mirradas bolsas por lutas profissionais.

Robson, olímpico aos 19 anos, pretende ficar nessa vida até a outra Olimpíada, Londres-2012. “Tenho jeito para o boxe profissional. Muita perna, coice nos punhos e vou sempre para dentro do adversário desde o primeiro rôndi [round]. Toda mão que tem uma luta braba da porra, me dou bem. Quero ser campeão. Não quero ser um Zé Ruela como tantos por aí”, vislumbra o adolescente de cotidiano espartano de treino, sono em beliches e refeições na tia Jonice, vizinha que faz frango com salada por R$ 3.

É dos poucos lugares que eles freqüentam na vizinhança periférica de Cidade Nova, onde fica a academia Champion (o outro local é a lan house próxima). Nada de passar pelo bar que é sede da Suingueira Futebol Clube e tem um cartaz dizendo “proibido som alto”. Nada de ceder aos cartazes em cada porta das residências, oferecendo geladinhos e quentinhas.

Desce-se a Ladeira do Ypiranga, passa-se pela Rótula do Abacaxi, sobe-se a Ladeira do Jacaré e é a mesma paisagem. No caminho, uma quadra de futebol tem um grafite misturando os escudos dos maiores clubes baianos (Bahia e Vitória) e a imagem de Popó, que hoje em dia passeia em uma BMW por lá. É sua figura que estimula o pescador Dimas Barbosa a, depois de passar a noite e madrugada no mar, ir treinar muitas vezes só com a vitamina que ganha na academia de Popó.

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