Atletismo

Hormônios de Caster Semenya e rivais são "elefante na sala" do atletismo

LUCY NICHOLSON/REUTERS
Caster Semenya exibe seus músculos para o público no Engenhão; sul-africana foi campeã nos 800 m imagem: LUCY NICHOLSON/REUTERS

Fabio Aleixo e Gustavo Franceschini

Do UOL, no Rio de Janeiro

“Meu amigo, nós não estamos aqui para falar sobre especulações. Hoje é um dia para se falar sobre a nossa performance”.

Caster Semenya, autora da frase acima, não queria falar sobre índices de testosterona. A campeã olímpica dos 800 m, que perdeu um ano da carreira se submetendo a testes para provar se era mulher, pareceu cansada de tratar do tema que a persegue. Francine Niyonsaba, do Burundi, e Margaret Wambui, do Quênia, que levaram prata e bronze, respectivamente, também são acusadas de se favorecerem de uma suposta alta concentração de hormônios masculinos em seus corpos, exatamente como a sul-africana campeã.

Nenhuma delas quis falar do assunto. A questão é uma espécie de “elefante na sala” do atletismo. Um tema que é de conhecimento geral mas sobre o qual todos têm dificuldade de falar. “Vamos focar na performance, não vamos focar em medicações ou quaisquer outras coisas”, disse a queniana. Até as rivais que ficaram sem medalha, teoricamente prejudicadas pela competição, evitaram polêmica. Joanna Jozwik, polonesa que terminou no quarto lugar, se recusou a tratar do assunto.

Um jornalista interessado em saber a opinião da americana Kate Grace sobre o assunto perguntou se ela “estava de acordo com o pódio”. Não mencionou ninguém e nem citou as palavras “hormônios”, “favorecimento” ou “polêmica”. A corredora, última colocada na prova, ainda não teve nenhuma dúvida do que se tratava. “Elas são grandes atletas, todas estão competindo de acordo com as regras”, disse Grace.

Patrick Smith/Getty Images
imagem: Patrick Smith/Getty Images

A questão é polêmica justamente porque é delicada. O caso de Caster Semenya, mais famoso, chama atenção desde 2009, quando ela ganhou o Mundial de Atletismo em Berlim e teve de passar os meses seguintes fazendo exames. Ela era acusada de ganhar vantagem por supostamente ter hiperandrogenismo, distúrbio endócrino que faz a mulher produzir hormônios como a testosterona em grande quantidade. Embora nunca tenha confirmado, a sul-africana passou a ser tratada como intersexual, nome dado ao indivíduo que possui variações genéticas que não permitem identificá-lo como totalmente feminino ou masculino.  

Caster passou um ano suspensa e voltou a competir em 2010, mas não teve os mesmos resultados de antes, apesar de ter sido prata no Mundial de 2011 e na Olimpíada do ano seguinte. Especula-se que ela tenha sido obrigada a tomar hormônios femininos para forçar um “equilíbrio” com as rivais, o que teria prejudicado suas atuações. Nada disso foi confirmado, no entanto. Semenya fala pouco e a Iaaf sempre tratou a questão com certo sigilo.

Indiana mudou cenário

No ano passado, no entanto, um julgamento liberou a sul-africana de qualquer obrigação. A Corte Arbitral do Esporte determinou, no caso da corredora indiana Dutee Chand, que não há evidência científica que comprove que a testosterona pode favorecer uma atleta de maneira mais significativa que fatores como sistemas de treinamento e nutrição ou mesmo outras características genéticas como altura ou envergadura, diferenciais em esportes como basquete e vôlei.  

Caster Semenya, desde então, voltou a fazer bons tempos e era favorita absoluta aos 800 m no Rio de Janeiro.  “Todo mundo vê que são duas corridas diferentes e não há nada que eu possa fazer”, avisou a britânica Lynsey Sharp, em entrevista ao Guardian no começo de junho - ela terminou a final dos 800 m na sexta colocação.

Patrick Smith/Getty Images
imagem: Patrick Smith/Getty Images

A Iaaf tem dois anos para recorrer na Corte Arbitral com evidências científicas que justifiquem uma mudança de regra. A tendência, no entanto, é que a ciência dê razão à participação de Semenya. Nesta semana, um estudo da Associação Americana de Medicina reproduzido pelo New York Times mostrou que não há “diferença fundamental” entre uma disfunção hormonal que produz testosterona em níveis acima do normal e outra que faça o mesmo com hemoglobina. Ainda assim, não há nenhuma tentativa de barrar atletas que possuam o segundo tipo de problema.

A análise da entidade tenta mostrar o papel do preconceito em toda a questão. Caster Semenya, como suas colegas de pódio, tem traços masculinos, voz rouca e é mais corpulenta que a maioria das corredoras de 800 m. A discriminação que está entre as razões da polêmica faz da sul-africana um ícone para qualquer pessoa em sua condição. E sobre esse assunto, sim, ela tem o que dizer.

“Eu acho que [ser exemplo] é sobre amar um ao outro e não sobre discriminar como as pessoas se parecem ou soam. Você pensa sobre performance, e não sobre como seu oponente parece. É para todo mundo ir lá e se divertir, ver o quanto vai conseguir atingir”, disse Semenya. 

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