Dirigente alerta que peneira no "arco e flecha" pra 2016 pode iludir índios

Elendrea Cavalcante

Do UOL, em Manaus

Até o final deste ano, seis indígenas de tribos do Amazonas serão selecionados para treinar por dois anos na Vila Olímpica de Manaus com a expectativa de participar da seleção brasileira de tiro com arco nos Jogos Olímpicos de 2016, no Rio de Janeiro. O inédito projeto foi lançado Fundação Amazônia Sustentável (FAS), mas repercute em virtude do pouco tempo que estes índios têm estarem aptos à competição e é contestado e visto com ressaltas pela própria Confederação Brasileira da modalidade.

O trabalho de procura dos índios foi feito pelo arqueiro e dirigente da Federação do Amazonas, Roberval Santos, em parceria com a parceria com a professora Márcia Lot. Ambos foram convidados Fundação Amazônia Sustentável (FAS), idealizadora projeto "Arquearia Indígena", a "caçar" talentos em sete aldeias indígenas. E, para isso, tiveram que se infiltrar nas tribos.

Márcia, por exemplo, passou de 15 a 20 dias para selecionar jovens com idade entre 14 e 19 anos das tribos Baré, Kambeba e Karapãna. "Eu morei com a família destes índios, vivi a rotina deles. Assisti aos Jogos Indígenas. E desta forma, pude observar muitos jovens: aproximadamente 80. Na hora de escolhê-los, levei em consideração não só o talento, mas também a índole destes meninos e meninas. Escolhi menino que não bebe, que não fuma. Porque os que forem escolhidos ao final precisam ter uma cabeça muito boa para seguir", explicou Lot.

Dos 80 índios observados em suas aldeias, 12 foram selecionados para o primeiro treinamento em Manaus, em junho deste ano. Depois, caiu para apenas oito. "Até o final do ano, estes nomes precisam estar definidos para que possamos treinar seis deles a partir de janeiro na Vila Olímpica de Manaus", disse Roberval Santos. 

Mas a real chance de um índio desse grupo estar capacitado para 2016 é questionada até por quem capitaneia a ideia. Arqueiro há 19 anos, Roberval admite que projeto de capacitação pode ser inviável para 2016, mas que pode pelo menos ser útil em longo prazo.

"Eu, de cara, achei impossível. Sabia que não seria fácil. Por sorte, nós temos três vagas para homens e três para mulheres garantidas para o Brasil pelo fato de ser o país sede dos jogos, mas eles (índios) têm que competir com outros brasileiros para conquistarem vagas. Mas estamos trabalhando. Vamos elevá-los a um nível técnico competitivo. As pessoas acham legal, mas concordam que é algo possível apenas para 2020. Mas isso não nos desestimula. Tanto que estamos treinando três horas de manhã e três à tarde", explicou o arqueiro.

A Confederação Brasileira de Tiro com Arco (CBTArco), apesar de alguns elogios, mostra preocupação e uma visão mais crítica. Eros Fauni, diretor técnico da entidade, disse não concordar com a forma com que a possibilidade destes índios ingressarem nas Olimpíadas é passada.


"Pelo pouco que eu vi sobre este projeto, acho que a forma que ele vem sendo divulgado pode estar provocando uma ilusão nestes meninos. E não é por aí. Sabemos que além de treinarem em Manaus, eles vão ter que disputar competições, conseguir índices, disputar com outros brasileiros as vagas disponíveis para os Jogos. Geralmente, um arqueiro só está preparado para ir a uma Olimpíada com seis, sete anos de treinamento, com raras exceções quatro, cinco anos. Ou seja é algo mais possível para 2020, mas isso não significa que é impossível. É uma boa iniciativa", explicou.

A visão de Fauni é endossada pelo diretor-técnico da Federação Paulista de Arco e Flecha (FPAF), Reinaldo Nunes, que não crê no sucesso do projeto para os Jogos do Rio. "Há um estudo da federação internacional de tiro com arco que mostra que de 1996 para cá, todos os atletas da modalidade que conseguiram medalhas em Jogos Olímpicos tinham pelo menos cinco anos de treinamento profissional, o que não condiz com a realidade e prazo que estes índios têm."

 

Índios sonham e desconhecem Olimpíada

A expectativa é grande entre os indígenas na busca da realização do sonho olímpico. Graziela ou Yaci, 18, cujo nome em "nheengatu" significa Lua, faz parte da tribo Karapãna e é a única menina do grupo de oito jovens que tenta conquistar uma das seis vagas para o treinamento do ano que vem. Aluna do terceiro ano do ensino médio, Graziela mora em Cuieiras, no Rio Negro. Para chegar até a escola, que fica em outra aldeia, ela sai de casa duas horas antes e segue o trajeto de barco. No retorno, a jornada se repete.

"Eu nunca tinha visto os Jogos na televisão. Eu não sabia a época que passavam porque na minha casa não tem luz direto. O gerador funciona apenas a noite", justificou Graziela, ressaltando que só pode conhecer um pouco dos Jogos Olímpicos pelas imagens que Márcia Lot mostrou em seu computador na aldeia.

Além da escola, Graziela teve de conciliar os treinos durante o período em que a "olheira" visitou a aldeia com as atividades domésticas as quais ela, a mãe e as irmãs são responsáveis. "Também sou responsável por fazer o pão para toda a aldeia. Mas sempre gostei de atirar. Eu aprendi a caçar com meu pai e meu avô", explicou Graziela. E como o talento com o arco e flecha é algo de família, além dela, outros dois irmãos também foram selecionados na aldeia para as seletivas de Manaus: Gustavo e Gibson.

Além de Graziela e dos irmãos, foi na aldeia Três Unidos, localizada na zona rural de Manaus, que outro talento foi descoberto por Márcia: Anderson ou Mui Piruata (nome que significa arco-íris), 15, da tribo dos Kambebas. Um jovem índio que mostra determinação na hora de buscar os seus sonhos. A treinadora compara sua garra de atleta com a coragem que o indígena teve em janeiro deste ano, quando assumiu todos os riscos ao decidir fugir da aldeia para casar com a prima (também índia).

"Ele disse que só voltaria para casa se deixassem eles casarem. E ele conseguiu. O interessante é que essa mesma busca pelo que ele quer, ele mostra nos treinamentos quando nos pergunta o que ele precisa fazer para ganhar uma medalha de ouro nas Olimpíadas", comenta Márcia.

Como um autêntico representante indígena, Anderson justifica que aprendeu a usar o tiro com arco aos quatro anos, só observando o pai. "Já peguei peixe, pássaro e caça. Hoje, eu fico me imaginando no meio dos maiores, conseguindo medalhas", idealiza o garoto.

Jardel, ou Wuanaiu (nome que significa pássaro caçador em nheengatu), 17, pertence a tribo dos Kambebas, é um dos oito finalistas, mas foi "pescado" um pouco mais longe: em Uarini (município a 560 quilômetros de Manaus). Além do sonho de participar de uma Olimpíada, ele traz consigo também a vontade de ser médico. Esta surgiu na cabeça do jovem como uma possibilidade de continuar com "a cura" que seu avô já faz na aldeia. "Meu avô é curandeiro e já salvou vidas", explica.

No último dia de treinamento na Vila Olímpica de Manaus, Jardel era um dos meninos mais concentrados. Com cuidado e atenção, ele manuseava o arco observando sua estrutura e detalhes, bem diferente tecnicamente dos que ele aprendeu a fazer na aldeia com palmeira. É que nos treinamentos realizados pelo técnico Roberval Santos, os meninos precisaram deixar os instrumentos rudimentares de lado para pegar no arco profissional.

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