UOL Olimpíadas 2008 UOL em Pequim
 

Escorpião esconde passado faminto do país

Rodrigo Bertolotto

Em Pequim

Os EUA transportarão para a China 11.000 quilos de alimentos para sua delegação, com a justificativa de que no refeitório da Vila Olímpica a carne poderá ter hormônio e os vegetais talvez tenham inseticida, o que prejudicaria seus atletas e poderia até apontar o uso de substâncias dopantes. A carga chegará a Pequim dois meses antes que os 600 atletas da superpotência. Até agora é o único país que tomou essa decisão, que gerou protestos dos organizadores.

Tudo isso porque um nutricionista do comitê norte-americano foi à capital chinesa e ficou surpreso de ver nos supermercados de lá o tamanho dos estufados peitos de frango postos à venda – com tanto esteróide quanto o velocista Ben Johnson em Seul-1988.

Mas, se ele tivesse ido a uma feirinha de Pequim, teria ficado ainda mais embasbacado. Na oferta de coisas que vão parar no estômago, só falta caco de vidro e lâmina de barbear para transformar o consumidor em uma atração circense. Tudo vai parar no espeto. Claro que abacaxi e camarão espetados são bastante aceitáveis para o paladar brasileiro. Mas também entram no cardápio dali acepipes como grilo, cavalo marinho, cigarra, pepino do mar, cobra, estrela do mar, pênis de cabrito ou libélula.

Com um passado com ciclos de fome causados por catástrofes naturais ou nem tanto, a população de Cantão (sul do país) ganhou a fama de comer “tudo o que tem perna e não é mesa, tudo o que nada e não é submarino e tudo que voa e não é avião”. E comem até o que não tem perna. Como, por exemplo, o bicho-da-seda. Alimentar 1,3 bilhão de pessoas não é fácil, e isso talvez explique a escolha tradicional por comer insetos ou a opção atual de colocar no prato animais e plantas geneticamente agigantados.

A reportagem do UOL em Pequim embarcou nessa aventura para turistas corajosos e experimentou a lagarta e outros bichos em uma feira no centro da cidade.

Flávio Florido/UOL

[legendafoto.plain.html_reserved]

A larva produz um fio precioso para fazer seu casulo, mas seu aspecto não é dos melhores. Grelhado na chapa por um minuto, o espeto mais parece uma fila indiana com cinco baratas.

A semelhança continua à primeira mordida: um creme claro sai de seu interior. Com tal espetáculo, o melhor era jogar o resto do espeto fora. Uma garota ao meu lado temperou o quitute com sal e pimenta. Cheirou e o despejou no lixo sem colocar os dentes nele. “Tentei comer, mas é horrível”, se justificou Xian, saindo de mão dada com o namorado, que a consolava da travessura gastronômica fracassada.

O petisco seguinte é um escorpião. O vendedor jura que eles são criados em sítios com a máxima higiene e fervidos para tirar o veneno. Mesmo assim, antes de pagar os 15 yuans (R$ 3), disparo para ele: “Vou morrer, mas vou levar você junto. Você come primeiro.” Depois de um sorriso de confiança, o cozinheiro morde a cauda do aracnídeo, justamente por onde ele inocula o veneno. E ainda faz carinha de quero mais, passando a língua nos lábios. Chega a minha vez. Mordo e, realmente, o bicho peçonhento e letal ao homem é bem gostoso. Tem sabor de salgadinho de camarão. Dá para comer a porção inteira, com água na boca.

Por último, é a vez da centopéia dourada. Um cartaz conta maravilhas do petisco. É rica em proteína. Promete ajudar na digestão. E, diz o prospecto, é boa no combate para o reumatismo e artrite (parece piada, mas também com tanta perna).

Depois de pechinchar no preço (pago a metade do preço inicial), mordo a lacraia. O interior verde revela um gosto amargo. Como vingança por tentar me explorar, finjo ser um especialista e critico o chef: “Você fritou demais, passou do ponto.”

É hora de sair da feira, imaginando que à noite os bichinhos vão passear na minha barriga. Contudo, realmente difícil foi digerir tanta informação sobre uma civilização de 4.000 anos em poucos dias e virar um especialista express em um fechar de olhos. É grande a tentação de cair em uma lógica National Geographic de prestar atenção só nas curiosidades e não ver o que há de comum lá como cá, como, por exemplo, as cadeias norte-americanas de fast food (a China é o país em que mais cresce esse tipo de alimentação). Afinal, o que é mais bizarro e venenoso um escorpião na chapa ou um balde de frango turbinado por hormônios e frito?

Publicado no dia 15 de abril de 2008

Compartilhe: