Do grito de guerra ao clamor pela paz: refugiados se unem para torcer no RJ
"Popole, boma ye!". O grito de guerra eternizado por Muhammed Ali na "luta do século" com George Foreman, em 1974, ecoava a todo momento em apoio ao refugiado do judoca congolês Popole Misongue, na quarta-feira (10). A 25 km do local da estreia do atleta na Olimpíada, refugiados que vivem no Rio se uniam na sede da Cáritas, na zona norte carioca, para acompanhar a transmissão e torcer. Depois da vitória de Popole no primeiro duelo, Mariama Bah, 26, caiu no choro.
"O momento que a gente viveu é para o mundo refletir sobre o refugiado. Para além das nossas dificuldades, os refugiados não deixam de ser jovens sonhadores. Para nós, o que aconteceu hoje significa uma inclusão no mundo inteiro. Rompemos as barreiras de como o refugiado é visto pelas pessoas", disse ela, que deixou sua terra natal, a Gâmbia, após ter sido forçada a casar quando era criança.
"Boma ye" ("Mata ele", em português) é "muito mais do que um grito de guerra", afirmou o congolês Charly Kongo, 35. "Representa o espírito aguerrido do povo africano", resumiu. O coro se repetiu quando, pouco depois, Popole entrou no tatame para encarar o campeão mundial e número um da categoria, Donghan Gwak, na segunda luta. Com menos experiência, o refugiado acabou sendo derrotado por estrangulamento. O resultado, porém, não reduziu a alegria da torcida.
"Eu vi o céu aberto para nós. Não sabia que um refugiado poderia chegar aqui e ganhar. Meu coração está inchado agora", declarou o congolês Sérgio Shindano. "A gente espera que isso tudo seja um símbolo de paz. É uma emoção indescritível. Espero que o mundo inteiro sinta isso conosco."
Outros dois atletas da inédita equipe olímpica de refugiados lutaram na quarta. Yolande Bukasa, também judoca da República Democrática do Congo, foi derrotada em sua estreia no tatame. Já a síria Yusra Mardini terminou a eliminatória dos 100m livre da natação apenas na 45ª posição (ela foi a penúltima colocada).
Com apenas 18 anos, a nadadora é considerada um exemplo de superação. Em 2015, após fugir da guerra, ela precisou nadar três horas e meia em mar aberto para sobreviver e ajudar pessoas que tentavam deixar o país do Oriente Médio e chegar à Europa. A torcida pela jovem coube à família Nachawaty.
"Não importa se ela ganhou ou não. A participação dela já é uma vitória. Estou muito feliz de poder acompanhar isso", afirmou Armin Nachawaty, 26, que também deixou o país natal por conta dos conflitos armados. Ele mora com o pai, Adeeb, a mãe, Hanna, e os irmãos Ebraheem, Mohammed e Youness.
A Cáritas montou um telão e preparou um bufê simples com doces e salgados para receber os refugiados. Além disso, pagou as passagens de todos aqueles que usaram transporte público e não tinham condições de custear do próprio bolso. Entre os torcedores que compareceram estavam congoleses, gambianos, senegaleses, sírios e pessoas de outras nacionalidades.
Os dois congoleses que disputaram a competição de judô também são refugiados residentes na capital fluminense. Mariama, que é amiga de Yolande, não conseguiu conter a emoção ao falar dela. "Para nós, mulheres, é ainda mais especial. Imagino a dificuldade que ela deve ter passado. Em geral, os refugiados já enfrentam muitos desafios, mas ser refugiado e mulher também é um fato adicional. Hoje ela está aos olhos do mundo", disse a jovem, com os olhos marejados.
Ela já é uma vitoriosa por ser refugiada, mulher e tomar a iniciativa de fazer coisas diferentes e não se deixar derrotar. Uma refugiada tem tudo para perder, mas a gente tenta reverter esse papel. A Yolande deu tudo de melhor dela e ainda tem muito para conquistar. Estamos orgulhosos. Eu, como mulher, mais ainda.
Mariama Bah, gambiana, 26
"Nunca é fácil começar do zero"
Mariama contou ainda que uma das principais dificuldades para os estrangeiros que buscam refúgio no Brasil é o idioma. "No meu país, a gente fala inglês. Estamos em inglês, mas quando chegamos aqui não sabia falar nada de português. Foi difícil porque o Rio também não estava muito acostumado a lidar com pessoas refugiadas. Foram muitos desafios, mas graças a Deus consegui fazer aulas e agora estou me comunicando em português", relatou.
A jovem gambiana disse ter sido retirada da escola para casar. Ela foi prometida a um homem mais velho quando tinha nove anos, e, aos 13, o matrimônio foi consumado. Um ano depois, ela conseguiu fugir do país. "Não era um homem que eu havia escolhido. (...) Sempre falei que aquela realidade não era para mim. Eu queria reverter essa história que também foi dos meus avós e da minha mãe. Aquela coisa de que lugar da mulher é na cozinha, casamento, família... O mundo evoluiu tanto que hoje a mulher pode ser o que ela quiser. Pode fazer várias coisas sem deixar de ter a sua independência e a sua voz."
Armin afirmou que a situação na Síria é "insustentável". Para ele, deixar o país e reconstruir a vida foi uma questão de sobrevivência. "Morávamos em Damasco, que ficou muito ruim porque as bombas estavam caindo em qualquer lugar. Não estávamos conseguindo mais viver", disse ele. Mohammed, um de seus irmãos, pertencia ao Exército do país e precisou peregrinar até chegar ao Brasil. "Foi o último a chegar. Ele era militar e não conseguiu sair. Só conseguiu fugir porque andou por dois meses até Istambul", contou.
No Rio, a família Nachawaty buscou abrigo na Casa de Apoio aos Refugiados, mantida pelo padre Alex Coelho Sampaio nos fundos da Igreja de São Sebastião, em Botafogo, na zona sul carioca. Pelo menos 16 pessoas vivem no local. Os irmãos Armin, Ebraheem e Mohammed trabalham vendendo doces e salgados árabes preparados pelos pais. A barraca é montada por eles na porta da paróquia.
"Tínhamos uma vida confortável na Síria, com casa e trabalho. Perdemos tudo mesmo. Hoje a gente vive vendendo comida árabe, os brasileiros gostam muito de esfirra e coisas assim", disse Armin.