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Atleta hoje no Brasil não é mais herói, diz Flávio Canto

Estevam Avellar/Globo
Em entrevista ao UOL, Flávio Canto avalia esporte no país e fala sobre a fama imagem: Estevam Avellar/Globo

Gustavo Franceschini

Do UOL, em São Paulo

Flávio Canto tem mais que uma medalha olímpica. Ao bronze conquistado em Atenas se soma o sucesso do instituto Reação, que ensina judô a crianças em comunidades carentes no Rio de Janeiro. A conta feita por ele mesmo aponta uma espécie de caminho para o esporte no país. Com a experiência de quem viveu a elite olímpica durante 15 anos e segue trabalhando diretamente com o assunto, ele é taxativo: “Atleta no Brasil não é mais herói”.

A frase, dita em entrevista exclusiva ao UOL Esporte, é um retrato da evolução que ele vê no esporte brasileiro desde que começou nos anos 1990. O passo fundamental é financeiro. Hoje, quem está no topo não vive a penúria de outros tempos e tem mais estrutura para conquistar resultados. Flávio só discorda da forma como esses resultados são avaliados.

“O ideal é ter uma visão muito mais de longo prazo. As pessoas fazem um cálculo muito prático, dizem se o investimento foi pouco ou muito. Vai ser pouco se tudo terminar em 2016. O poder transformador de uma medalha, se você souber usá-la, é muito grande. Quanto vale você ter um Cielo? Acho que pode valer mais”, diz Canto.

Aos 40 anos, ele se divide entre as funções de apresentador na Globo, consultor na seleção brasileira de judô e garoto-propaganda de boas iniciativas. Canto aproveita a fama para participar de campanhas beneficentes e ainda consegue ser garoto-propaganda – fechou, há duas semanas, com a rede de shopping Aliansce. Precisa, no entanto, lidar com o ônus de ser conhecido e protagonizar fofoca a contragosto.

Confira, abaixo, as melhores respostas de Flávio Canto sobre a fama, o judô, a carreira e o esporte brasileiro:

Atuação fora dos tatames na seleção
Em toda a minha época de judô todo mundo era muito unido. A gente pensava junto em termos de seleção. Nós conseguimos deixar uma espécie de legado que foi o plano de carreira. Fizemos um modelo coletivo de remuneração que serve até hoje. A CBJ estava crescendo, tinha resultados e todo ano os atletas tinham de negociar remuneração individualmente, era um projeto muito personalizado. Nós quisemos fazer algo que não fosse passageiro. Você pega o montante que a CBJ tem para dar aos atletas e divide em dois. Metade vai ser dividida entre os atletas medalhistas olímpicos ou mundiais. A outra metade entre atletas bem ranqueados. Com isso, o atleta sabe que vai ser premiado de atingir uma medalha importante e também se estiver entre os melhores do mundo. Para funcionar todo mundo tinha de abrir mão de alguma coisa. O Tiago Camilo, por exemplo, tinha o melhor currículo e topou estar junto em vez de negociar individualmente uma premiação que podia ser maior pelo que ele já havia ganho. Tem um quê aí de... Não vou dizer ‘Democracia Corintiana’, mas é um modelo mais democrático.

Luiz Shinohara, técnico da seleção
O Jun [como Shinohara é conhecido] é das melhores coisas que aconteceram na minha vida. Quando eu ganhei a medalha uma das primeiras coisas que eu fiz foi ir lá na Vila Sônia, na academia dele, falar com as crianças. Era uma forma de retribuir a participação dele naquela conquista. Ele tecnicamente é uma sumidade. A gente se ajudou muito ao olhar mais taticamente as lutas. Eu sempre lutei contra o Tiago Camilo, que na minha opinião é mais técnico do que eu. Para superar isso eu fui um dos primeiros a analisar lutas, estudar golpes. Hoje em dia todo mundo faz isso, mas em 2001 era uma novidade. A nossa cultura era muito de buscar o ippon a qualquer custo. E o Jun embarcou nessa comigo. A gente começou a descobrir junto que isso funcionava.

Nota da redação: Em entrevista ao UOL Esporte, Luiz Shinohara apontou Flávio Canto como o melhor judoca com quem ele trabalhou na seleção

Vitória da tática
Em 2003, no Pan de Santo Domingo, eu tinha ficado seis semanas sem treinar por causa de uma lesão. Era só fisioterapia, viajei sem nenhum treino de quimono. Eu ligava para o Flavio [Honorato, reserva de Canto na época] e falava para ele ficar preparado porque talvez eu não conseguisse lutar. Eu só assistia às lutas e estudava. De tão preparado que eu estava, foi uma das competições mais fáceis que eu tive. Na final eu peguei o Gabriel Arteaga, cubano que sempre era meu rival nos torneios. Ele tentava um golpe e eu sabia reagir a tudo. Ele acabou desclassificado. Acho que até agora não entendeu o que aconteceu naquele dia.

Por que o Brasil venceu tanto no judô nos últimos anos?
O que mudou foi a estrutura e as viagens. A geração do Jun [competiu nos anos 1980] tecnicamente era excelente. Na época, o lado técnico era muito mais valorizado, mas eles não competiam nunca contra os melhores. Os dez melhores países se encontravam 20 vezes por ano e o Brasil só via eles no Mundial. Isso fazia muita diferença. O Brasil ia muito bem no Mundial júnior, por exemplo, porque ainda não havia muita competição pelo mundo na categoria. Aí quando passava para o adulto esse intercâmbio fazia falta e os resultados não se repetiam.

O esporte brasileiro melhorou?
Uma coisa que mudou, e eu falo com total propriedade, é que o atleta hoje não é mais herói. Não é aquela coisa do esforço, da abnegação. Pelo menos não no judô. Todos os atletas hoje ganham uma remuneração razoável. Não dá para você comparar com o futebol, mas já não é mais só aquela ajuda de custo. Na minha primeira Olimpíada eu ganhava R$ 500. Não tinha esse olhar de lutar para fazer o pé de meia. Era até um sonho mais puro de lutar para ganhar algo. Hoje isso melhorou. Hoje o COB tem até a preocupação de manter o atleta com os pés no chão, como se diz. O problema financeiro está muito mais na base. Quando o atleta chega na seleção ele já tem uma estrutura e um salário melhor.

Segredo do sucesso
É dinheiro e interesse político. Hoje, Cuba está depauperada e o esporte está em crise. É lógico que tinha a ver com vontade política de fazer o esporte. É ilusão achar que se constrói atleta de ponta sem dinheiro.

Brasil pós-2016
O ideal é ter uma visão muito mais de longo prazo. Avaliar só pelo resultado é ruim. Acho que a preocupação tem de ser com o que vai acontecer depois. As pessoas fazem um cálculo muito prático, dizem se o investimento foi pouco ou muito. Vai ser pouco se tudo terminar em 2016. Eu tenho um bom exemplo do quanto vale uma medalha. Hoje o Reação tem seis unidades, 40 funcionários e atende 1,2 mil alunos. O poder transformador de uma medalha, se você souber usá-la, é muito grande. Ela se estende por muito mais tempo. Quanto vale você ter um Cielo? Acho que pode valer mais. A Rafaela [Silva, campeã mundial que iniciou a carreira no Reação] e o sucesso dela fazem uma diferença enorme na fidelização do aluno.

Monocultura do futebol atrapalha?
Uma das maneiras de mudar isso é buscar ídolos em outros esportes. Para ele ter outras pessoas para querer ser além do Neymar. Lá no Reação, por exemplo, a gente tenta evitar a monocultura do judô. Tem uma parte do nosso programa que faz diferentes atividades no tatame, para desenvolver outras habilidades das crianças. Tem muita gente que torce contra o futebol na Olimpíada. Eu não concordo. Futebol também é esporte. Se eu perco uma criança para o futebol está tudo bem. O problema é perder para ela ficar na rua. É pobre pensar só em futebol, isso é claro. A pobreza de você estar na monocultura é perder potenciais atletas porque eles não experimentaram outras modalidades.

Fama
Tem uma parte muito legal, que é você poder usar isso para ajudar. Eu sou chamado toda hora para campanhas beneficentes. Outro dia eu fui lá pedir autorização para poder participar e brincaram: ‘Pô, mais uma?’. Se eu consigo usar essa fama para ajudar, por que não? Agora, tem o lado ruim da fofoca. Você sai de um nicho que é o esporte e passa a ser muito mais conhecido. A parte chata é ficar visado em um lado que não escolhi, que são essas fofocas de mulher, umas coisas nada a ver. Mas compensa.
 

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