Catadora de lixo dos Jogos supera tragédias e hoje só falta "beijo na boca"

As lixeiras cheias não param de chegar aos containers do Parque Olímpico. As arenas estão lotadas e os torcedores jogam fora seus restos de comida e outros resíduos. Ainda faltam cinco minutos para começar o turno das 17h, mas Claudete da Costa não quer saber de perder tempo. Começa a revirar cada cesto, separa garrafas plásticas e embalagens enquanto descarta pratos e guardanapos sujos. Tudo com a destreza de quem é expert no assunto.
Ela nem precisava ser tão persistente. Agora já é chefe dos catadores de material reciclável e tem funções mais burocráticas, mas gosta mesmo de botar a mão na massa. Vai embora só depois de 1 h e chega em casa de madrugada. Sua rotina tem sido essa desde o início dos Jogos Olímpicos, mas é só mais um capítulo de uma história de 25 anos.
Claudete fez da coleta a sua vida. Foi assim que saiu da rua, construiu uma vida digna e passou a ser respeitada. “Eu não gosto dessa imagem do catador como mendigo, pobrinho, sofrido. Eu tenho orgulho e valorizo o meu trabalho porque abriu portas para tudo. Concluí a minha casa, terminei meu estudo, me empoderei, digo que tenho ausência de necessidade hoje”, diz ela, que abomina o nome "lixo" por representar a escória. Ela é, sim, catadora de material reciclável, de resíduos que ainda serão aproveitados pela sociedade. Com muito orgulho.
Mas a trajetória ao longo dos 36 anos de idade foi árdua e com doses cavalares de acontecimentos trágicos. Não é exagero dizer que o lixo até a salvou da morte ainda na infância. Por pouco, ela não foi uma das oito crianças assassinadas na chacina da Candelária, na madrugada de 23 de julho de 1993, no Rio de Janeiro.
Claudete morava na rua e era amiga de todos aqueles jovens, entre eles Sandro Barbosa do Nascimento, que sequestrou o ônibus 174 alguns anos depois. Todos eram seus fieis companheiros no pique esconde e rouba bandeira, e aquele seria mais um dia de brincadeiras na igreja. Mas sua mãe a obrigou a ajudar no trabalho catando resíduos na rua porque o material estava escasso. A reclamação virou alívio diante do sofrimento das famílias amigas.
O pior: perder amigos na rua fazia tão parte daquela realidade que se tornou ao menos corriqueiro. Claudete estava acostumada com a violência. Morou dos oito aos 15 anos nas ruas do centro da capital carioca, onde vendia doces e pedia esmola para ajudar a mãe que havia fugido de casa por apanhar do marido. Aos 11, já coletava material reciclável.
Ela até guarda lembranças doces da infância quado vivia livre na rua, mas também não esquece as várias vezes em que foi humilhada. Afinal, ser mulher, negra, pobre e catadora de lixo não é exatamente o que uma sociedade cheia de preconceitos espera de você.
“Quem trabalha na rua é tratada como lixo mesmo, nem é reciclável porque esse tem valor, assim que a gente é tratado. Já cuspiram em mim várias vezes, de dar catarrada mesmo só porque eu estava catando material. Já vi muitas vezes as mulheres chegarem perto de mim e segurarem a bolsa com medo de eu roubá-las.”.
E situações absurdas não são exclusivas da época em que morava na rua. Alguns episódios doem até hoje. “Recentemente, fui para Fortaleza no encontro nacional de catadores. Fiquei três dias trabalhando, e eu e duas amigas fomos para a piscina. Tinha um grupo de família, e a mãe não entrou na piscina e não deixou a criança entrar. Eles só entraram depois que eu saí quando já eram 18h30. Diante de Deus que aquilo mexeu comigo, fiquei dois dias com isso na cabeça”.
As coisas mudaram. Hoje, ela tem sua casa, vai fazer faculdade de engenharia ambiental, se tornou a primeira mulher representante do movimento nacional dos catadores de papel e é uma das diretoras da cooperativa Ecoponto. Continua dando a cara a tapa para o preconceito e tem que aturar marmanjo que não aceita mulher na chefia. Mas é aí que faz uso de um velho ditado: manda quem pode, obedece quem tem juízo.
“A mulherada está à frente, felizmente. Mas eles não aceitam. A gente que é mulher quando se destaca sofre rejeição, isso pode ser jornalista, empresária, catadora, em qualquer profissão sofre preconceito da sociedade. Sou chefe e sinto que eles querem tomar decisões, mas não vão passar por cima de mim. Eles tentam pegar meu lugar, mas eu me imponho e passo a cartilha com as coisas a serem cumpridas”.
No Parque Olímpico, são elas quem mandam no pedaço. No grupo de Claudete, que trabalha nos arredores da Arena Carioca 1, só há mulheres, o que contribui para a estatística de que 80% das catadoras são meninas. “Mulher é mais organizada, a gente vai trabalhando e vai limpando. Tem mais mulher porque a gente acaba sendo mãe e pai, hoje são muitas mães solteiras que tiveram que ir para a rua garantir o sustento”.
Claudete conhece bem essa realidade. Sempre trabalhou e teve que ir à luta ainda mais depois de casar aos 15 anos e ter três filhos. Um deles morreu em uma tragédia ao ser atropelado com apenas sete anos, oito anos atrás. Hoje, ela tem um casal, Yago, de 21 anos, e Jennifer, de 12 anos.
Apesar de toda a história difícil, a vida vai muito bem, obrigada. Não fosse um pequeno detalhe que quase passa despercebido: ela jura que não beija na boca há dez anos. “Estou solteira há 12 anos, não beijo na boca há 10 anos. Eu trabalho muito, sou evangélica, e no fim de semana eu cuido da casa e da família. Não curto night, essas coisas. E no meu tempinho de folga o tempo vai passando e acabo que não beijo na boca. As amigas falam quando alguém me canta, mas eu nem ligo”, brinca.