! Michel não ganhou medalha. E daí: "é o meu ouro lá em casa", disse a mãe - 15/08/2016 - UOL Olimpíadas

Olimpíadas 2016

Michel não ganhou medalha. E daí: "é o meu ouro lá em casa", disse a mãe

Felipe Pereira

Do UOL, no Rio de Janeiro

Em pleno Dia dos Pais, o pugilista Michel Borges, 25 anos, subiu no ringue para a maior luta de sua vida. A vitória garantiria ao menos o bronze nas Olimpíadas na cidade em que nasceu. O pedreiro Severino Borges, 58 anos, vivia um sonho. Ele introduziu o filho no boxe e havia cumprido a promessa adiada por décadas de ‘colocar dentes’. Nada saiu como o planejado.

Seu Severino ficou doente e assistiu ao combate de casa. Michel foi derrotado. A tristeza da família durou nem 10 minutos. A mãe do lutador, Maria Clenilda Borges, 52 anos, explica que o filho ter caráter vem muito antes de uma medalha.

“Vou abraçar ele toda hora enquanto tiver aqui. Desde que veio ao mundo é o meu campeão. Não faz nada de errado e isso vale mais que uma medalha”.

Claro que houve tristeza com a derrota. A mãe e as quatro irmãs, que gritaram “vai Michel” um milhão de vezes durante os 15 minutos de luta, ficaram cabisbaixas. Em silêncio os Borges se consolaram e receberam abraços de amigos.

Mas o sinal de que o boxe não é mais importante que a união da família apareceu quando o DJ tocou Rihanna 10 minutos depois do gongo final. Uma das filhas fazia uns passinhos enquanto a música Diamonds era executada.

A serenidade existiu porque nenhum filho foi criado com a missão de ser atleta. Dona Maria Clenilda conta que se preocupou em fazer Michel e as irmãs estudarem e tomarem gosto por trabalhar. Confiante na educação dada, deixou eles escolherem o caminho a seguir. Mas uma interferência de seu Severino colocou o filho nas Olimpíadas.

Aos 10 anos, o menino foi inscrito num projeto social de boxe no Morro do Vidigal, favela do Rio de Janeiro onde moram. O pai queria que Michel realizasse um de seus desejos de infância – o outro era estudar.

Deu tão certo que aos 17 anos o filho se tornou campeão brasileiro juvenil na categoria 69 quilos. O título permitiu disputar uma competição no México. Michel viajou com uma farmacinha na bagagem porque estava com febre de 40 graus.

A família explica que pobre nunca sabe se terá outra oportunidade por isso ele encarou. Ainda baqueado, perdeu logo na estreia. Este resultado também pouco importa para dona Maria Clenilda.

"Vai ser sempre meu campeão".

A mãe lembra bem da competição porque foi a primeira vez que sentiu o coração apertado pela saudade de uma viagem internacional. O filho ligou e Dona Maria Clenilda não conseguiu falar com Michel de tanto que chorava.

Saulo Cruz/COB
imagem: Saulo Cruz/COB


Legado da Olimpíada: um sorriso perfeito

De viagem em viagem, Michel chegou nas quartas de final das Olimpíadas do Rio. Ele desejava com todas as forças dedicar a vitória a seu Severino no Dia dos Pais. Mas estava sereno depois da derrota.

Não se importava em tirar várias fotos sorrindo ou com o punho cerrado, pose escolhida por dois voluntários que arrastaram uma cerca de metal que delimitava uma área para roubar uma selfie com o boxeador. A família estava satisfeita.

Além do carinho com que Michel foi tratado, a Olimpíada permitiu a realização de um sonho coletivo dos Borges: seu Severino ‘colocou dentes’. O pedreiro trabalha sábados, domingos, feriados e natais para os cinco filhos terem um futuro. Em nome da família, renunciou a si mesmo por 41 anos.

Como recompensa, a filha mais velha vai virar advogada neste ano. O pai prometera não ir à formatura e à Olimpíada se não substituísse os únicos dois dentes que tinha por um sorriso completo. Uma das filhas, Maristele Borges, 23 anos, ficou com o coração apertado quando viu o resultado.

“A maior vitória dessa Olimpíada foi ele ter colocado estes dentes. Eu senti vontade de chorar. Em 23 anos eu nunca tinha visto meu pai de dente. Foi uma sensação muito boa mesmo. Ele nunca sorri, sempre com vergonha, baixava a cabeça”, falou emocionada.

Ela lembra que o pai apareceu de surpresa com a dentição perfeita 15 dias antes da cerimônia de abertura do Rio-2016. Mas o planejamento para o domingo foi por água abaixo por causa de um problema de saúde.

O pedreiro sofre de nevralgia, uma dor intensa e aguda em um ou mais nervos do corpo. Mulheres com a doença comentam que é pior que a dor do parto, explica dona Maria Clenilda. Uma pena porque todos tinham certeza que seu Severino ia se divertir com o que aconteceu no Riocentro, onde foi disputado o boxe.

A torcida enlouqueceu quando Michel foi anunciado. O ginásio inteiro gritou "Michel, Michel, Michel", enquanto os torcedores batiam os pés na armação de metal fazendo um barulho que abafaria a decolagem de um jato. Logo começou o coro de "Uh Vidigal, Uh Vidigal", mostrando que os amigos compareceram em peso.

Os maiores anseios de Severino para os filhos estavam no Riocentro. Uma futura advogada na arquibancada e Michel no ringue. Estudar e lutar seria o futuro que ele escolheria para si caso pudesse voltar no tempo. Mas vida não ofereceu a ele estas oportunidades.

Nascido em Fagundes (PB), conheceu a lida na roça ainda criança. Estudou somente até a quarta série, mas desde que se conhece por gente trabalha. Plantou feijão, milho, abóbora e maxixe e ajudou na criação de porcos até os 17 anos. Com esta idade, deixou o sertão nordestino em direção ao Rio de Janeiro. Levou nada além do apelido de Raminho, como é chamado até hoje.

Quando soube que Maria Clenilda também mudou para o Rio, deu um jeito de conseguir o endereço dela. Marcou um encontro que virou casamento.

Medalha não é prioridade

O casal se estabeleceu no Vidigal num tempo em que a favela era bem menor. Enfrentou os problemas típicos dos moradores como a constante falta d’água na década de 1990, e os tiroteios que se intensificaram a partir da virada do século.

Maristele conta que ao voltar da escola várias vezes precisou esperar no pé do morro até a situação ficar calma e poder ir para casa. Houve também ocasiões em que teve de obedecer ao toque de recolher estabelecido pelos traficantes.

Mas os Borges nunca tiveram medo de que alguém da família se envolvesse com o crime. Mulher de Michel, Jessica Borges diz que todos são muito centrados. Com eles, não existe esta de que o esporte mudou um destino.

O que o boxe fez foi aproximar todos ainda mais em torno de um sonho. A derrota entristece, mas não gera uma crise. Os Borges não têm a medalha como sentido da vida. E Michel sabe que novas oportunidade virão.

“Certeza que Deus está guardando algo bom para mim no futuro”, afirma.

Dona Maria Clenilda não precisa esperar para ter certeza que o melhor já chegou. Não vai ter visita nos estúdios da Globo, entrevista no Jornal Nacional, nem conversa com Guga no Sportv. Mas não é para isso que criou Michel.

“Ele é o meu ouro lá em casa.”

 PETER CZIBORRA/REUTERS
imagem: PETER CZIBORRA/REUTERS

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