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23 anos depois, Candelária troca chacina por pira. E acesa por jovem negro

MARCOS BRINDICCI/REUTERS
Jorge sorri ao lado da "pira do povo". Ao fundo, a igreja da Candelária, palco de uma chacina há 23 anos imagem: MARCOS BRINDICCI/REUTERS

Gustavo Franceschini

Do UOL, no Rio de Janeiro

Cerca de meia hora depois de Vanderlei Cordeiro acender a pira olímpica no Maracanã, uma outra, denominada "pira do povo", se iluminava no centro do Rio de Janeiro. Jorge Gomes, de 14 anos, foi o responsável por atear fogo ao objeto que representará os Jogos Olímpicos enquanto eles estiverem na Cidade Maravilhosa. Jovem, negro e nascido no morro da Mangueira, ele apareceu sorridente para o mundo todo com a Igreja da Candelária ao fundo. É o mesmo local que, 23 anos atrás, foi palco de uma chacina que matou oito e feriu outras dezenas de pessoas que dormiam na rua. As vítimas eram, em sua maioria, jovens e negros.

O ato é simbólico. Em 1993, o Rio de Janeiro foi notícia no mundo todo porque um grupo de policiais, irritado com meninos de rua que haviam quebrado o vidro de uma viatura na tarde anterior, atiraram contra cerca de 70 jovens que dormiam nas cercanias da igreja, no centro do Rio.

A chacina da Candelária, como o episódio ficou conhecido, levou pessoas às ruas, mobilizou movimentos sociais e transformou o Rio de Janeiro em um exemplo de cidade violenta. Em 2013, quando o massacre completou 20 anos, o papa Francisco esteve na cidade para a Jornada Mundial de Juventude. Em seu discurso a um grupo de jovens detentos, repetiu as palavras de ordem que marcaram o episódio: "Candelária nunca mais!".

Os policiais responsáveis pela chacina só foram identificados porque Wagner dos Santos, à época com 21 anos, sobreviveu a quatro tiros e conseguiu fazer um retrato falado dos autores. Três policiais militares foram condenados a, somados, mais de 200 anos de prisão – cumpriram menos de 20. Wagner sofreria um atentado um ano depois e teve de se mudar para a Europa, inserido em um programa de proteção a testemunhas. Segundo sua irmã, é atormentado até hoje por pesadelos com a noite fatídica e sofre com uma série de sequelas dos ferimentos.  

Hoje, o palco do horror que atormenta Wagner tem outra cara. A região faz parte da revitalização do centro que foi promovida por conta da Rio-2016. Com a “pira do povo” acesa durante todos os dias dos Jogos no chamado “boulevard olímpico”, a cidade convida seus turistas a conheceram uma outra Candelária, que se pretende bem diferente daquela que foi palco do horror há duas décadas.

A escolha de Jorge não foi aleatória. A organização da Rio-2016 chegou ao seu nome por conta da Vila Olímpica da Mangueira, projeto social da escola de samba homônima que oferece aulas de vários esportes, entre eles o atletismo praticado pelo eleito. “Ligaram para o Chiquinho [da Mangueira, presidente da escola] e pediram um atleta mulatinho e que tivesse 14 anos”, explicou Edileuza Medeiros, técnica do jovem e responsável pela indicação.

Nascido no morro da Mangueira, Jorge viveu em abrigos até os oito anos, quando foi adotado pela mãe Ana Oliveira. A notícia da participação no acendimento da pira veio a dois dias do evento, e nenhum deles parecia acreditar muito no que havia acontecido quando o fogo já iluminava a praça XI. “Nunca imaginava que isso poderia acontecer”, disse o garoto. “Eu estou em êxtase, babando demais. A emoção dele é contagiante”, disse Ana.

O acendimento da pira tenta mandar uma mensagem. Foi em 1995, um ano após a chacina, que o Rio de Janeiro apresentou pela primeira vez o projeto de ser sede olímpica ao COI. Mudar a imagem da cidade, manchada pela violência, era um dos principais objetivos. É difícil dizer que essa realidade mudou. Só que a Candelária, ao menos desta vez, não foi destaque pelo horror como há duas décadas. 

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