Atletismo

Por que um recorde de Semenya no Rio pode mudar para sempre o atletismo

Tiziana Fabi/AFP
Caster Semenya, atleta sul-africana, na Rio-2016 imagem: Tiziana Fabi/AFP

Quando a sul-africana Caster Semenya entrou na pista do Engenhão para competir na classificatória para os 800 metros rasos na quarta-feira, não houve burburinho.

As arquibancadas estavam quase vazias. Semenya cruzou a linha de chegada em primeiro lugar em sua série, como se esperava, quase trotando, sem esforço. Na quinta, também venceu sua semifinal. Foram os momentos de calma antes da tormenta que pode desaguar no próximo sábado.

Isso pode acontecer se ela confirmar sua condição de grande favorita para ganhar a medalha de ouro e conseguir quebrar o recorde mais antigo do atletismo, intocado há 33 anos.

"Já não vamos poder chamar isso de esporte", criticou a ex-atleta britânica Paula Radcliffe quando questionada sobre o possível triunfo da atleta sul-africana que em 2009 assombrou o mundo ao arrasar na final dos 800 metros no Mundial de Atletismo em Berlim, com apenas 18 anos.

Desde aquele momento, Semenya ficou sob escrutínio público por ser o que se considera uma atleta intersexual.

O termo é usado para descrever variações nas características de uma pessoa que não se encaixa na definição genética que tipicamente diferencia os corpos de homens e de mulheres.

No caso de Semenya, seu corpo gera, de forma natural, níveis de testosterona semelhantes aos que se encontram nos homens, o que se conhece como hiperandrogenismo.
E para Radcliffe e muitos especialistas, essa condição representa uma ameaça ao atletismo feminino.

"É um homem"

Há sete anos, no Mundial, Semenya ficou exposta, inclusive antes de ganhar a final com a maior margem da história dos mundiais de atletismo.

De voz grave e corpo musculoso, a atleta havia conseguido baixar em sete segundos seu menor tempo nos 800 metros em apenas nove meses, progresso que levantou suspeitas entre as autoridades esportivas.

Descartado o doping como a razão da evolução de seus tempos, a atenção se voltou para seu corpo.
E a jovem foi obrigada a se submeter a exames de gênero para confirmar se era mesmo mulher - um questionamento público de sua identidade sexual.

O caso é semelhante ao da judoca brasileira Edinanci Silva que, devido a outra condição - ela seria portadora de hermafroditismo -, apresentava características dos dois sexos, também produzindo mais hormônios masculinos. Ela passou por uma operação antes dos Jogos de 1996, mas teve que se submeter a um teste para provar que era mulher.

No caso de Semenya, a notícia ameaçou inclusive ofuscar os recordes históricos de Usain Bolt e, na imprensa, a imagem dela foi publicada diversas vezes.

"É homem ou mulher?", "Há dúvidas de que atleta sul-africana seja mulher", "A ambígua sexualidade de Semenya", "Caster Semenya é ele ou ela?" foram alguns dos títulos de reportagens da década passada.

E, fascinados pela história, muitos veículos se esqueceram de que ela envolvia uma adolescente que durante 18 anos nunca havia questionado sua feminilidade.

Discriminação?

A Associação Internacional de Federações de Atletismo (IAAF, na sigla em inglês) concluiu que as atletas intersexuais com hiperandrogenismo possuíam uma clara vantagem sobre o resto das participantes, que qualificou de injusta. Por isso, estabeleceu regras para limitar essas diferenças. 

Semenya podia correr, mas com a condição de se submeter a um tratamento para reduzir sua produção de testosterona para abaixo do nível máximo permitido, 10 nanomoles por litro de sangue, que equivale a três vezes o nível que produzem 99% das atletas mulheres.

E foi isso que todos supõem que ela fez, já que nunca voltou a correr nos tempos que estabeleceu em 2009.

Ganhou a medalha de prata no Mundial de 2011 e nos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012, mas aquele 1 minuto, 55 segundos e 45 centésimos de 2009 permaneceu intocado desde Berlim.

No ano passado, Semenya sequer avançou para a final do Mundial de Pequim e, em 2014, não conseguiu se classificar para os Jogos da Comunidade Britânica na Escócia. Sua carreira foi perdendo brilho e ninguém voltou a questionar seu gênero. Até que outra mulher qualificada como intersexual decidiu apresentar um recurso contra o regulamento da IAAF.

A atleta por trás do recurso é a indiana Dutee Chand, que foi excluída da equipe que participou dos Jogos em Glasgow ao negar-se a tomar um medicamento para limitar a produção de testosterona de seu corpo.

O Tribunal de Arbitragem Esportivo (TAS, na sigla em francês) aceitou os argumentos dos advogados de Chand, que além de classificar a medida de discriminatória apontaram que a IAAF não havia comprovado que a testosterona melhorava o rendimento das mulheres.

A norma, então, ficou suspensa até julho de 2017, deixando Chand, Semenya e outras atletas intersexuais - duas das quais que também participam da Rio 2016 - livres para correr sem medicamento.

Em busca do recorde

O efeito foi imediato em Semenya, ainda que muita gente próxima a ela diga que isso não se deve somente à decisão do TAS.

Em abril, ela ganhou as provas de 400m, 800m e 1.500m das classificatórias olímpicas sul-africanas no mesmo dia, e na reunião de atletismo da Liga Diamante de Mônaco, em julho, correu a distância em 1.55"33, o tempo mais rápido desde 2008.

Muitos acreditam que a influência de Jean Verster, seu novo treinador desde o fim de 2014, também foi fundamental para o progresso recente de Semenya.

E, agora, muitos consideram que a corredora sul-africana poderia bater o recorde que Jarmila Kratochvilova estabeleceu em 1983, representando a então Checoslováquia.

Kratochvilova nunca teve um teste de doping com resultado positivo, mas sua marca está associada a uma época em que predominavam os programas de doping impulsionados pelos governos de países do Leste Europeu.

Dom natural

Assim, se Semenya ganhar o ouro não será uma grande surpresa.

Mas se ela conseguir bater o recorde mais antigo do atletismo, um que muitos especialistas consideram impossível quebrar sem o uso de substâncias proibidas, será inevitável que volte o debate ético e científico sobre a vantagem genética que seu corpo tem.

Para Chand e seus advogados, é um dom natural, como as passadas rápidas de Usain Bolt, a envergadura dos braços de Michael Phelps ou o sistema cardiovascular do ciclista espanhol Miguel Indurai, que nunca foram questionados por suas vantagens "injustas".

Mas à medida que Semenya progrida e quebre recordes, a IAAF se sentirá pressionada a intervir para não discriminar as 99% de mulheres que não possuem os mesmo níveis de testosterona de um número tão reduzido de atletas.

"Você deveria ganhar uma medalha de ouro se tem uma grande carreira", disse o renomado treinador australiano Nic Bideau, "mas ela pode ter uma carreira medíocre e ganhar".

Aí repousa o dilema para Semenya. Se ela conseguir correr da maneira que todos acreditam que é capaz, quebrando recordes, pode estar ao mesmo tempo acabando com sua carreira.
Esta pode ser a evidência que a IAAF espera para justificar seu regulamento.

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