Até a vitória sempre?

Com receita socialista de formar atletas, Cuba testa sua força olímpica às vésperas de uma grande mudança

Rodrigo Bertolotto e Ugo Araujo Em Havana, Cuba

Edição a edição dos Jogos Olímpicos desde o final da Guerra Fria, Cuba se equilibra para não perder colocações no quadro geral de medalhas. A ausência de recursos dos soviéticos e o bloqueio econômico norte-americano atrapalham muito. Entretanto, mais de 25 anos depois, a ilha se sustenta como grande potência esportiva. E olha que faltam verbas, instalações esportivas adequadas e também suplementos alimentares. O UOL Esporte foi a Cuba em começo de 2016 para mostrar a paradoxal situação destes atletas. Obama deu esperança que a cena econômica melhore nos próximos anos. Para a Olimpíada do Rio, os cubanos tentarão manter o status com os recursos escassos que hoje existem. Veja abaixo

O esporte cubano vive nos tempos da Guerra Fria

O estádio mais parece uma carcaça secando sob o sol e a maresia do Caribe. A última demão de tinta branca foi em 2008. Sem refletores, o local só é usado de dia. Já o placar eletrônico quebrou e foi coberto por um outdoor com a imagem de Che Guevara e sua frase “Hasta La Victoria Siempre”. A pista de atletismo está totalmente descascada. Lá, pisando em placas soltas de borracha, treinam três favoritos ao pódio do Rio-2016, e mais três dezenas de atletas da delegação olímpica.

O estádio Pan-Americano de Havana é só uma metáfora de um país em ruínas. Cuba vive ainda uma economia de guerra. No caso, de uma Guerra Fria, que só não acabou por lá. Nos livros de história, o conflito teve fim em 1991, mesmo ano que Cuba inaugurava seu estádio durante o Pan. Depois de 25 anos, o único país comunista das Américas resiste, apesar do embargo do vizinho EUA que estrangula sua economia. E continua uma força olímpica, colhendo medalhas no boxe, judô, luta, atletismo e várias modalidades.

Tudo aqui está obsoleto, mas eu estou acostumado. E isso ainda nos motiva porque lutamos de igual para igual com todos”

Pedro Pichardo, promessa de glória no salto triplo, resume assim o espírito de “time pequeno” para enfrentar potências. Duas datas são decisivas em 2016 para o esporte cubano.  Em 21 de agosto, o país vai contabilizar as medalhas e comparar com as edições anteriores. No dia 8 de novembro, é eleito o sucessor de Barack Obama, presidente dos EUA que vai deixar como maior legado a reaproximação com Cuba. O país está às margens de uma grande mudança, mas tudo é incerteza e expectativa na ilha mais imprevisível do planeta.

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Os talentos que - ainda - nascem da revolução

A academia de boxe mais antiga do país é ao ar livre, espremida entre o casario colonial do centro de Havana. Lá, meninos de cinco anos treinam socos e esquivas. Aos nove, já estão competindo. Todos os equipamentos estão puídos e enferrujados. A lona do ringue, de tão rasgada, não aceita mais remendo. Se falta material, sobra conhecimento. O técnico ali é Hector Vinent, que aos 24 anos pendurou as luvas após ter um descolamento de retina em sua trajetória rumo ao segundo ouro olímpico em Atlanta-1996 - venceu quatro lutas vendo de um olho só. Ele resume a receita local do sucesso:

Tem que começar bem criança, porque naturaliza os movimentos do esporte. Depois é só selecionar os melhores e prepará-los

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Os internatos esportivos, chamados de EIDE (Escuela de Instrucción Deportiva Escolar), são os celeiros. São 15 no total, um para cada província do país. Lá, as crianças selecionadas por suas aptidões físicas estudam, treinam e dormem. Só voltam para casa nos fins de semana. Isso a partir dos 10 anos. Antes a reclusão era mais cedo. “Com oito anos, entrei na EIDE de Camaguey. Mesmo morando na mesma cidade, meus pais tinham que ir até a escola para me ver nos dias de semana”, lembra Yumilka Ruiz, integrante da seleção de vôlei tricampeã olímpica.

Massificar o esporte, selecionar cedo, treinar, selecionar de novo e formar as equipes nacionais em Havana. Nada como um regime centralizado para fazer isso. O bloco comunista dominou as Olimpíadas após a Segunda Guerra Mundial com essa receita. Cuba conquistou o quinto lugar, com 12 ouros, em Barcelona-1992, justo quando o comunismo desmoronava. Hoje, isolada em seu idealismo, a ilha segue a fórmula em um mundo dominado pelo esporte profissional. Até quando?

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Treinar com tampões e improvisos

A temporada de furacões é de julho a novembro no Caribe, mas os vidros da Escola Nacional de Ginástica estão eternamente cruzados com um “x” de fita adesiva. Se os vidros quebrarem, vai demorar para substituir. Como tudo no principal centro de treinamento do país. De tantos saltos e pousos, o piso de madeira ficou todo esburacado. Improvisadamente, placas de compensado tapam os rombos para que os ginastas não se lesionem. Vários aparelhos perderam o revestimento de couro e soltam espuma interna, mesmo com os remendos tentando segurar o transbordamento.

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Dar desculpas não é parte do nosso treinamento. Os ginastas sabem que, se conseguem um bom desempenho com esses aparelhos desgastados, farão em qualquer lugar.

O treinador Carlos Gil treina a elite, entre eles, Manrique Larduet, que foi prata no Mundial de 2015 na prova individual geral, maior feito da ginástica cubana. “Tudo está velhinho, mas só tenho a agradecer ao nosso comandante por estar aqui”, diz Larduet. Ele se refere a Fidel Castro, líder da revolução de 1959 que trocou a farda verde da guerrilha pelos agasalhos esportivos de Cuba depois que se aposentou do poder, passando em 2011 o comando da ilha para seu irmão mais novo, Raúl.

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EUA: a salvação ou o bloqueio?

A invasão norte-americana está prestes a acontecer. Mas é de turistas. Obama reatou as relações diplomáticas, visitou Havana e flexibilizou o embargo que desde 1962 proíbe qualquer empresa que esteja no mercado dos EUA de fazer comércio com Cuba. Entre os itens, está o esporte e o turismo. A expectativa é que se Obama conseguir eleger a também democrata Hillary Clinton, a aproximação vai seguir acelerada. Já se o republicano Donald Trump ganhar as eleições de novembro, colocaria o pé no freio, sem interromper o processo.

Há mais de meio século, Cuba é tema de polêmica, principalmente no continente americano. A ilha já foi definida como ”uma porção de terra cercada de mágoa”. Para uns, é o saco de pancada ideológico. Para outros, é o Davi que desafiou Golias “imperialista e capitalista”. O embargo é chamado de “bloqueo” em espanhol. Não por nada, vários cartazes políticos em Havana associam o termo ao bloqueio do vôlei, esporte popular por lá.

As visitas têm direito a piscinas. Já os atletas...

O passado é turístico, ainda mais quando ele está vivo em uma redoma retrô. A letargia econômica montou o cenário único de carros dos anos 1950 (dos EUA) e dos anos 70 (da União Soviética) baforando fumaça cinza na capital colonial. O visitante vai a Cuba atrás do tempo que parou, mas também para desfrutar do sol tropical.

Na avenida Primera, no arborizado e residencial bairro de Miramar, vários hotéis oferecerem piscinas impecáveis a beira-mar para os estrangeiros. Pena que mesma avenida esteja também a Escuela Nacional Marcelo Salado, centro de natação onde treinaram os dois últimos pódios saídos das águas: Rodolfo Falcón e Neissert Bent, prata e bronze nos 100 metros costas de Atlanta-1996. Por lá, as piscinas só acumulam sujeira, o piso está soltando e o prédio descascado e semi abandonado. Não adianta culpar o mar, com seus salitres e ressacas. Afinal, os edifícios vizinhos estão intactos.

O regime deixou de investir na natação. Um medalhista sai muito caro, e a concorrência é muito forte. Já o turismo é uma aposta certa: foi o único setor com alta rentabilidade após a revolução. A tradicional cana-de-açúcar foi a base da economia, mas oscilações nas safras e preços quebram qualquer economia planificada. Nesses anos, Cuba descobriu também as safras de atletas e medalhas também variam muito.

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Se os desertores ainda estivessem na ilha

É um drama familiar. O tio é “uma glória do esporte revolucionário”. O sobrinho é “um traidor”. Alberto Juan Juantorena é o atual presidente da Federação Cubana de Atletismo e foi o primeiro e único ser humano a ser ouro nas provas de 400 e 800 metros em uma só Olimpíada (Montreal-1976). Já Osmany Juantorena se transferiu para o vôlei profissional da Itália sem o aval das autoridades cubanas e vai ser a principal figura da equipe italiana nos Jogos do Rio.

“Cuba seria invencível se tivéssemos os desertores no time nacional. Pena que nem todos desenvolveram a sentido da gratidão”, se queixa Alfonso Nacienceno, editor de esportes do Granma, jornal oficial do governo cubano. Já os atletas que se foram culpam os dirigentes esportivos.

O êxodo só foi contido no início de 2014, quando os salários e as porcentagens nos prêmios foram aumentados. Antes, os atletas recebiam 15% das premiações no exterior (5% ficava com o técnico, e os 80% restantes para o governo). O jogo inverteu, e os esportistas ficam agora com 80%, os técnicos com 15%, e o governo fica só com os impostos.

Mesmo na crise, a elite esportiva tem status

Cubanos viraram até vegetarianos por falta de opção. Fidel chegou a brincar que o governo deu "anistia aos porcos" quando no pior da crise econômica na virada do século sumiu a carne da dieta da população. Mas não da mesa dos atletas. Eles formam uma casta na sociedade cubana que está fora do racionamento e das libretas do mercado estatal. Afinal, têm acesso a viagens ao exterior e dinheiro estrangeiro. Mesmo privilegiados, têm restrições.

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Por vezes, faltam suplementos, vitaminas e creatina para recuperar o desgaste físico. A maioria desses produtos são norte-americanos, e é difícil de conseguir.

Denia Caballero, 26, é a atual campeã mundial do lançamento de disco e mora em Miramar, bairro em que vivia a elite antes que os comunistas chegassem ao poder. Hoje, muitos atletas e ex-atletas têm casas por lá. Com o título de 2015, ela ganhou aumento de 20% no salário (agora é de 1.300 pesos ou R$ 4.550). Se for ouro no Rio, receberá mais 20% de aumento, fora um prêmio pela medalha (2.500 pesos ou R$ 8.750) e a garantia de um rendimento vitalício.

Os valores são baixos se comparados aos milhões que um esportista profissional ganha no sistema capitalista, mas é bem distante do rendimento médio do cubano (dez vezes inferior). O governo cubano negou que isso prejudicaria o igual igualitário do regime e usou até uma frase de Karl Marx para justificar: “De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades.”

Os ex-atletas que conseguiram se manter na elite

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O bar de Javier Sotomayor

O dono do recorde mundial mais antigo criou um bar na frente de sua casa com o nome de 2.45, a marca de 1993 no salto em altura nunca igualada (há um sarrafo na fachada). O bar fechou após a separação, e sua ex-mulher quer reabri-lo se a abertura econômica se confirmar.

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A pizzaria de Mireya Luis

Considerada a melhor jogadora de vôlei de todos os tempos, ela montou em 2012 com o marido italiano a pizzaria Tres Medallas, referência aos três ouros olímpicos. O negócio da agora dirigente fechou em 2014 - no lugar foi montado um outro restaurante italiano, Olivo.

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O albergue do Dayron Robles

Ele foi ouro nos 110 m com barreiras em Pequim-2008, chegou a trocar Cuba por Mônaco, voltou e vem para o Rio. No centro de Havana, Robles reformou um casarão colonial e montou um albergue charmoso em uma rua cheia de entulho. Tem cinco quartos para turistas.

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O restaurante de Raúl Diago

Levantador da seleção de vôlei e depois dirigente da modalidade, ele abriu um restaurante com shows de música e humor em 2012. Colocou à venda o local em 2015, mas não encontrou comprador. Diago foi afastado da federação em 2011 por suspeita de corrupção.

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O símbolo da resistência cubana

“Eu sou a façanha da revolução.” Félix Savón é o boxeador amador mais premiado de todos os tempos (três ouros olímpicos e seis mundiais). Hoje, vive com salário de 300 pesos (R$ 1.100) e tem um sítio em que os parentes plantam mandioca, feijão e banana. Ele lembra em todas suas entrevistas que chegaram a oferecer US$ 5 milhões para lutar com o norte-americano Mike Tyson.

O comunismo imaginou um “novo homem”, um operário-padrão que surgiria após a superação do capitalismo. Mas o avanço social não foi acompanhado pelo progresso econômico. E tanta  idealização não resistiu às crises econômicas como Cuba vive desde que o bloco soviético desmoronou. Sobraram como heróis locais os astros esportivos. Nos anos 1960  e 1970, Cuba exportava guerrilheiros e soldados em seu “dever internacionalista” para America Latina, África e Oriente Médio.

Essa utopia tropical também se reflete na imprensa estatal (a única existente), que não publica notícias negativas, afinal, em sua lógica, uma sociedade modelo não pode ter coisas feias como roubos, assassinatos, protestos e mais problemas. “Não há censura, há seleção”, definiu certa vez Fidel. Pelo visto, Cuba sabe escolher muito bem os atletas e as notícias.

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É o esporte que mistura a Xangô e Che

Esse socialismo com brechas capitalistas não é o único sincretismo cubano. Na ilha, a mitologia guerrilheira se mistura com os deuses da santería, a religião afrocubana. No esporte, ela é bem forte. O principal exemplo é Ronaldo Veitia, o treinador de judô mais vitorioso fora os mestres japoneses. No pescoço, ele tem colares com imagens do guerrilheiro Che Guevara e de São Lázaro, santo católico que corresponde a entidade Obaluayê. Cada uma das 24 medalhas olímpicas conquistadas nos seis Jogos em que dirigiu as judocas cubanas foram levadas até a igreja e penduradas no pescoço do santo para agradecer.

Mas São Lázaro também foi culpado pela campanha sem ouro em Atenas-2004 (o judô colheu uma prata e cinco bronzes). “Na volta, me criticaram muito. Então, eu decidi levar uma imagem do Che junto, afinal, ele é um santinho prá gente também. As críticas pararam”, resume Veitia, 68, que se aposentou no ano passado. A população negra rural é a mais beneficiada pelo progresso social em Cuba. E, não por acaso, também foi o viveiro da maioria dos astros esportivos. Foram esses guajiros, como são chamados os camponeses por lá, conservaram a fé vinda da África, reprimida nos primeiros anos de revolução, mas hoje em dia se vê muita gente vestida de branco por Cuba. 

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