Os Jogos Olímpicos da ambivalência
Adio tanto quanto posso este texto, não sei o que dizer sobre as Olimpíadas. Quero entender o que eu mesmo penso a respeito, o que sinto, submeto os meus pensamentos a um escrutínio e saio vazio mais uma vez. A cerimônia de abertura, admito quase a contragosto, foi de uma beleza surpreendente, mas não pude deixar de sentir que havia ali algo de indecoroso. Alguma inquietude me visita a cada noite, e ainda assim acordo ávido por acompanhar as preliminares do judô, da ginástica artística, de algum esporte improvável cujas regras desconheço.
Vivo estes Jogos, e não devo ser o único, com o sentimento mais absoluto de ambivalência. Não era a hora de receber o evento, disso tenho certeza. Primeiramente, como tem se dito, o governo que agora se arroga a missão de promovê-lo é ilegítimo. Poderia ser uma vergonha ante o mundo que aqui chega, não fosse esse mundo tão dado a desgovernos – não fossem tantos os golpes que o mercado decreta. O evento em si também não se salva, tem sua dose generosa de violência: desaloja milhares de suas casas, explora operários, estimula a especulação, desvia fundos que serviriam melhor a outros quereres – à preservação dos direitos ameaçados, sugeriria alguém de bom senso.
E, no entanto, essa não é a história inteira, e repetir essas ideias não as faz mais verdadeiras. Despejo essas frases na tela e descubro que elas ainda não são o que tenho a dizer. O pessimismo nunca foi virtude de ninguém, penso. O pessimismo pode corroer tudo o que temos, está no cerne do acirramento de ânimos que nos domina, é agente ativo de tantas violências, tantos retrocessos. Não, não parece haver sentido em maldizer as Olimpíadas, em querer o seu fracasso, em manchar a festa com a tristeza nossa de cada dia – mesmo que a própria festa possa causar tristeza.
Oscilo então ao polo oposto, mais alegre, e deixo que os dedos expressem o meio sorriso que se esboça no rosto. Os Jogos não podem ser a expressão do desalento. Que não nos sirvam como recomeço, tudo bem, que sirvam como um respiro breve neste duro presente, e que insinuem ao menos a retomada de algum riso, algum afeto. Os Jogos, penso, não são dos senhores de terno preto e sorriso amarelo que acham que nos governam. São das judocas, dos ginastas, dos tantos atletas do improvável. São de toda essa gente de músculos tão rijos quanto certezas: a convicção, tão inocente, tão bonita, de que ali se encontra o sentido de suas existências.
E assim, por um instante, creio encontrar o sentido do que eu tinha a dizer. O que eu tinha a dizer Nina Simone já disse, em seus belos versos sobre tudo o que não tem, sobre o pouco que lhe resta. Nina Simone não tinha casa, não tinha dinheiro, não tinha país – tinha o seu corpo. Talvez nos falte o mesmo, ou mais: nos falta democracia, nos falta igualdade, nos falta justiça. Mas a cada manhã, nos próximos dias, talvez possamos lembrar que ainda temos pernas, braços, mãos, fígado para resistir, sangue a correr nas veias.
* Julián Fuks é escritor e crítico literário, autor de obras elogiadas como Histórias de Literatura e Cegueira, Procura do Romance e A Resistência
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL