Coluna

Roberto Salim

Ninguém foi à academia de boxe da Maré: "Todos estão com medo. De novo"

Roberto Custódio, pugilista da Maré
Divulgação
Roberto Salim

Roberto Salim, repórter da Folha de São Paulo, Estado de São Paulo, O Globo, Gazeta Esportiva, Última Hora, Revista Placar, ESPN Brasil. Cobriu as Olimpíadas de Barcelona, Atlanta, Sydney, Athenas, Pequim e Londres. Na ESPN Brasil realizou mais de 200 documentários no programa 'Histórias do Esporte', ganhando o Prêmio Embratel com a série 'Brasil Futebol Clube' e o Prêmio Vladimir Herzog.

Colunista do UOL

A professora Rosane Bezerra não pôde ir até a ONG “Luta pela Paz” dar suas aulas de cidadania na manhã desta quinta-feira. As ruas estavam desertas ali na região de Nova Holanda, onde funciona a academia central do projeto. Uma das entradas para o Complexo da Maré, na Linha Amarela, exibia uma placa que não combinava com os últimos acontecimentos. Ela era de uma ironia sinistra: “seja bem-vindo à Vila do João”. Tudo muito confuso, deserto, policiado e violento. Cenário de guerra, nesta cidade olímpica.

“Todos acham que isso é comum para quem mora na Maré, mas não é não... estou vendo tudo de novo na TV e não me conformo, as crianças dentro de casa, as ruas sem ninguém, está tendo operação policial aqui, todos ficam com medo“, revoltava-se a professora de 45 anos, que é nascida e criada no lugar tristemente famoso. ”Isso tudo é muito violento e as vítimas são tanto os soldados como os traficantes, jovens abandonados pelo sistema”.

Ela sabe muito bem o que diz. Vive na comunidade e trabalha num ambicioso projeto sócio-esportivo, em que se tenta resgatar a cidadania com o auxílio principalmente de aulas de boxe, ministradas por Antônio Cruz, o peso mosca Gibizinho, que durante muito tempo defendeu a equipe do Brasil. Ele participou inclusive dos Jogos Pan-americanos de Winnipeg, em 1999. “Estes são nossos campeões”, ele mostra com orgulho as fotos que enfeitam a academia principal do projeto, sempre que alguém chega lá para uma reportagem.

Gibizinho tem hoje cerca de 300 alunos. “A gente tira muita criança do mundo errado”.

Há mais dois locais de treino no Complexo da Maré, também para judô e taekwondô. “A maior diferença do nosso projeto para os outros é que não pensamos somente em campeões do esporte”, explica Ana Rosa Reis, a gerente de comunicação. “Nosso objetivo é promover também uma educação social, para que as crianças e os jovens percebam que há alternativas para eles, mesmo com esses fatos violentos que acontecem em nosso espaço”.

Parece pouco e um esforço até ingênuo diante de tanta indiferença do poder público, mas não é. Quem convive com os problemas e busca soluções como Roberto Custódio tem certeza de que o esporte pode tirar alguns jovens do inevitável destino das drogas. Ele é o grande nome do projeto e por pouco não conseguiu a vaga para defender o país na Olimpíada:

“Participei das lutas eliminatórias no Cazaquistão, em junho, mas perdi a segunda disputa para o pugilista de Trinidad Tobago e fui eliminado”, lembrava ele nas arquibancadas do Pavilhão 6, do Riocentro, onde foi torcer pelos seus companheiros de seleção.

“Comecei no boxe aos 14 anos, porque queria ser reconhecido na comunidade, onde apenas os meninos envolvidos com tráfico são respeitados”, admite o meio-médio de 29 anos, que se expressa muito bem, concluiu o ensino médio e pensa em fazer faculdade de Educação Física:

“Às vezes eu me pergunto onde eu estaria hoje se não fosse o boxe? E eu mesmo respondo: com certeza não estaria no tráfico, mas não se pode culpar quem entra”.

Por que não?

“Porque são jovens vítimas da própria cidade. Não têm oportunidade de se educar e disputar uma vaga de trabalho. Muitos servem o Exército e aprendem a manejar armas e quando voltam para casa são abraçados pelo tráfico e são usados contra o próprio Estado como na tragédia da Vila João”.

Um acontecimento que era corriqueiro em outro ponto do Rio de Janeiro onde o boxe ajudou a comunidade a se reerguer: o Morro do Vidigal. Ali, o técnico Raff Giglio tem sua academia, com dois pugilistas que subiram ao ringue olímpico no Riocentro:

”Aqui o povo aceitou a UPP, mas na Maré o Comando Vermelho é mais bravo, não aceitou as Unidades de Polícia Pacificadoras. Lá os bandidos brigam mesmo, os soldados erraram o caminho e eles meteram prego...”

Uma policial de Mato Grosso do Sul, que estava trabalhando a cinco quilômetros da tragédia, não vê o acontecimento como erro dos companheiros da Guarda Nacional:

”Se fossem soldados do Rio de Janeiro não teriam entrado ali... mas eram jovens de outros Estados... então ficamos impotentes em situações assim, mesmo porque nos contaram que foi um ato covarde dos traficantes, pois os soldados não estavam desembarcados do carro, nem em posição de combate... além do mais, em nossas cidades por mais que haja violência, ela não é desse nível... não sei quando perderam o respeito pela polícia aqui no Rio de Janeiro, mas ele não existe mais”.

Nesta sexta-feira, se a situação ficar um pouco melhor, a professora Rosane Bezerra levará dez crianças do projeto para um passeio na Zona Sul. Um evento ligado aos Jogos Olímpicos.

“Talvez assim elas esqueçam um pouco o que aconteceu aqui”. E antes de se despedir, a professora pediu para que pensássemos numa frase: “O Estado não pode cobrar algo que ele não dá a população: dignidade”.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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