Novas regras olimpícas abrem portas para atletas transexuais. Ainda é pouco
Jaiyah Saelua fez história em novembro de 2011 ao ser a primeira mulher trans a atuar nas Eliminatórias duma Copa do Mundo da FIFA, pela seleção masculina da Samoa Americana. Jogar na seleção masculina não foi algo que a incomodou, até porque só o fato de poder jogar em um mundo em que pessoas trans quase não têm direitos já é um avanço. Mas é interessante notar que, à medida que vamos nos impondo na sociedade, à medida que vamos nos fazendo respeitar, as regras criadas antes de existirmos publicamente em número considerável começam a ter que ser repensadas, inclusive os critérios para considerarmos justa uma competição. E as Olimpíadas são o prato cheio para chamarmos atenção para o assunto.
Refazer as regras seria particularmente importante para começarmos a romper com a ideia nociva de que esporte não é lugar de pessoas trans e intersexo ou de que atletas só podem fazer sua transição de gênero depois da aposentadoria, a exemplo de Caitlyn Jenner e Kellie Maloney. Competição esportiva que se preze tem que entender seu papel na construção de uma sociedade que não reproduza práticas discriminatórias.
Para começar, precisamos lembrar que a ciência ainda está aprendendo muito, mesmo em sentidos biológicos, sobre o que significa ser mulher ou homem.
Por exemplo: a corredora espanhola Maria Patiño descobriu que, apesar de ter vivido a vida toda como mulher e ter um corpo naturalmente feminino, a descoberta dos cromossomos XY em seu teste genético, realizado às vésperas da competição que poderia lhe garantir vaga nos Jogos Olímpicos de Seul (1988), não permitiam que a ciência a considerasse como tal. Portadora de uma condição rara, a síndrome da insensibilidade androgênica, seu corpo produzia o hormônio masculino, a testosterona, mas suas células não respondiam a ele, o que fazia com que ela não desfrutasse de nenhuma vantagem física por conta disso.
Resultado? Considerada homem pelo Comitê Olímpico Internacional (COI), ela foi impedida de participar das Olimpíadas e, exposta ao escárnio público, perdeu seu lugar na equipe espanhola, sua bolsa de estudos, o namorado, e precisou ainda de quatro anos pra conseguir reverter a decisão. Quatro anos na vida de uma atleta, fora o trauma da exposição, imagine o peso! Jogador de basquete com dois metros de altura, tudo bem, mas nascer com um Y inútil nos seus cromossomos, aí já é trapaça. Qual o sentido?
Muitas outras atletas passaram por situação similar, atletas que em meio a competições importantes descobriram que a ciência não as considerava tão mulheres quanto a vida as vinha considerando até ali. É o caso, por exemplo, da judoca brasileira Edinanci Silva, que teve de se operar às pressas antes das Olimpíadas de Atlanta (1996) para caber nos critérios de mulher do COI, e da corredora indiana Shanti Soudarajan.
Dado emblemático sobre Soudarajan: ao ver-se obrigada a largar os esportes, teve que voltar a trabalhar nos fornos de tijolo ganhando o salário mínimo médio que as mulheres recebem na Índia - valor inferior ao que o que é pago aos homens. Como bem aponta Giovana Capucim e Silva: "Na hora de definir seu pagamento, não houve questionamento sobre sua feminilidade". O que é ser mulher, afinal: existir enquanto mulher para a sociedade ou, antes, o resultado de um rigoroso exame de laboratório?
Eis a pergunta que, lançada no mundo dos esportes pelas pessoas intersexo (essas que a ciência tem dificuldade em definir se são do sexo feminino ou do masculino) e agora alavancada pelas pessoas trans, vem forçando o COI a repensar suas regras e definições, pois cada vez vai se mostrando mais claro o quanto esse ideal de competição "justa" só leva em consideração quem não é trans nem intersexo. Qual o lugar do homem trans no esporte, o homem que nasceu com vagina mas que se hormoniza com testosterona? Qual o da mulher trans, mulher que nasceu com pênis, em especial a que faz uso do bloqueador de testosterona?
Com as diretrizes que o COI acaba de publicar, estabelecendo critérios mais razoáveis para a participação de pessoas trans nos esportes de alto rendimento (por exemplo, eliminando a necessidade de intervenções cirúrgicas e diminuindo o tempo mínimo de uso do bloqueador de testosterona), vê-se um primeiro passo na tentativa de superar essas violências, e aí já é possível que, nas próximas Olimpíadas, encontremos uma ou outra de nós disputando um lugar ao sol.
No país que, ao mesmo tempo, mais mata travestis e que mais consome a pornografia em que elas aparecem no mundo, a participação oficial de pessoas trans vai talvez se restringir a Laerte Coutinho carregando a tocha olímpica ou a Lea T. na cerimônia de gala da abertura. Já é algo, mas ainda pouco, muito pouco. Esse número cresce caso a gente dê uma olhadinha na participação não oficial, aquela que se dá nas sombras, às escondidas, das travestis prostitutas que cobram trocados (tudo o que a gente pode cobrar) pra fazer a alegria de atletas e turistas gringos. Qual o nosso lugar na Olimpíada?
* Amara Moira é colunista da Revista AzMina e autora do livro “E se eu fosse puta?”. É travesti, prostituta e feminista. Militante dos direitos de LGBTs e de profissionais do sexo, ainda faz doutorado em teoria literária pela Unicamp, para o desespero do patriarcado.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL