Eu, favelada, faço um balanço das Olimpíadas
Os Jogos Olímpicos já deixaram faz tempo de ser uma competição esportiva, para se tornarem além disso, um evento de grandes proporções que envolve decisões políticas globais e muito dinheiro. Para a realização desses dias quase que impecáveis, muitas mudanças aconteceram na cidade olímpica, incluindo remoções cruéis e, não posso deixar de dizer, melhorias. Foi assim que nós, cariocas, chegamos até aqui: preparados para tudo.
Acompanhamos tudo, "sofrendo" às vezes mais, às vezes menos, e ficando perceptível a cada momento qual era a etapa.
Viver numa cidade como o Rio de Janeiro ainda traz as preocupações femininas do dia a dia, do tipo ir ao Parque Olímpico e dizer par a amiga "avisa quando chegar". Mas é inegável que áreas da cidade antes quase "inabitáveis" se tornaram novos pontos de lazer e entretenimento. De forma geral, observei uma cidade muito mais iluminada e segura, ainda que sinônimo de segurança no Brasil seja apenas o aumento do número de policiais.
Não é por acaso que duas mulheres foram baleadas no Complexo do Alemão no último dia 18. Uma delas, Darlene da Silva Gonçalves Correia, faleceu. O Complexo do Alemão está ocupado militarmente desde 2010 e sua "pacificação", assim como o de outras favelas na cidade do Rio, era um legado dos grandes eventos. Mas como se vê, se lê, se ouve, se sente, isso não aconteceu. No mesmo dia, Martine Grael e Kahena Kunze conquistaram o ouro na vela.
Foi perceptível também acompanhar as propagandas que tentaram trazer a representatividade feminina, como exemplo, aquela propaganda do achocolatado famoso, que trouxe meninas suadas praticando atividades físicas ao invés dos usuais "uniformes" de princesa.
Existem dentro disso dois bordões universalizados e usados tanto por quem entende tudo, quando por quem não entende nada, mas precisa se fazer de entendido: MEU CORPO MINHAS REGRAS e LUGAR DE MULHER É ONDE ELA QUISER. Os dois, mesmo já tendo sido "incorporados" pela grande mídia, continuam aí, importantes para quem quiser usar.
Que ótimo que continuamos pensando esses bordões e deles surgiu o #QueroTreinarEmPaz e o #MaisQueMusas. Houve quem se surpreendesse com a cobertura das Olímpiadas Rio-2016, mas eu confesso que não. Talvez eu seja muito crente na humanidade, ou muito treteira, seja como for, eu sabia desde o início que comentários machistas e misóginos não passariam desapercebidos em uma competição com 45% de mulheres, um recorde histórico.
Foi importante deixar de ser mulher de alguém, irmã de alguém, filha de alguém, o novo Phelps ou o novo Bolt. E foram as atletas muçulmanas dos Estados Unidos e do Egito, na esgrima e no vôlei de paia respectivamente, que deram aula para o mundo todo de como usar hijab e quebrar estereótipos.
O país do futebol começou a questionar a si mesmo antes até da abertura dos Jogos, quando as competições masculinas e femininas já corriam soltas por várias arenas do Brasil. Foi só aí que resolvemos comparar os salários, o investimento midiático e meritrocrático.
Por fim, enceramos adiando o sonho do ouro feminino por mais quatro anos, mas ainda assim, amando mais que nunca esse time de alegrias e vitórias. O futebol que "não merece Marta e Cristiane", como escreveu Nana Soares, foi o time que nos devolveu o gosto de torcer após o 7x1. Mas que fique claro, você não precisa odiar a seleção masculina (ou o Neymar) pra apoiar a seleção feminina.
Eu torço para que aumentem o número de meninas fazendo esportes inspiradas pela Marta e pela Rafaela e que elas tenham financiamento - isso sim seria um legado olímpico.
* Ana Paula Lisboa tem 28 anos, é a mais velha de quatro irmãos, filha de dois pretos. Moradora do Complexo da Maré, Zona Norte do Rio. Escritora, publicou contos e poesias em coletâneas nacionais e internacionais como a “Estrelas Vagabundas”, “26 novos autores da FLUPP” (Festa Literária das Periferias), “Eu me chamo Rio” e na “Je suis Favela”. Em 2014 recebeu o 1º Premio Carolina de Jesus, dado a pessoas que tiveram suas vidas mudadas pela Literatura. Desde 2012 faz parte da equipe de coordenação da Agência de Redes para Juventude, projeto que tem como missão mudar a relação da cidade com a juventude de favela. E em 2016 passou a escrever para a revista feminista AzMina e para o Segundo Caderno do jornal O Globo.