Olimpíadas 2016

Heroína mais famosa da história olímpica diz por que não se aguentava em pé

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A suíça Gabrielle Andersen chega, exausta, ao fim da maratona da Olimpíada de Los Angeles imagem: Reprodução

Fernando Santos

Colaboração ao UOL, em São Paulo

Com a cabeça prestes a desabar, coberta pelo boné branco encharcado de suor, os braços descontrolados e soltos no ar, pernas bambas, corpo inclinado como um veleiro num vendaval, ela chegou cambaleando a poucos metros da linha de chegada da maratona de 1984. Não ganhou medalha nem ficou sequer perto do pódio, mas entrou para a história das Olimpíadas numa das cenas mais marcantes de todos os tempos. 

Quem viu (ou é capturado pelas constantes reprises) a suíça Gabriele Andersen agonizando na pista do Coliseu de Los Angeles podia acreditar que era o fim de sua carreira. Muito pelo contrário. Ela não só seguiu como maratonista, mesmo sendo uma quarentona à época, como também manteve uma formidável forma física, responsável por dar continuidade a sua paixão pelo esporte.
 
Reprodução/ArquivoPessoal
imagem: Reprodução/ArquivoPessoal
 
Hoje, aos 71 anos, ela compete no mountain bike e no esqui alpino (cross country e snowboard), além de ter trabalhado anonimamente durante anos como florista e instrutora de esportes de neve num isolado recanto para turistas, com menos de 2 mil habitantes, numa das mais remotas regiões do noroeste dos EUA. Casada com um americano, Gabriele instalou-se em Sun Valley, em Idaho, que atrai multidões no inverno congelante.
 
Na sua casa, que diz ser grande e espaçosa, onde cria dois gatos himalaia e possui um belo jardim, foi onde ela concedeu esta entrevista.
 
Histórica sim, heroína não
“Não sei se posso me considerar uma heroína, mas reconheço que aquele se tornou um momento histórico. Era a primeira vez que as mulheres disputavam uma maratona olímpica e isso chamou muito a atenção. Era o momento de provar que nós, mulheres, podíamos competir e, mesmo com alguns problemas, terminar a prova.”
 
A grande vilã: a umidade
Há quem atribua ao calor o maior problema. Mas a temperatura não estava tão alta naquela manhã de 5 de agosto, por coincidência a mesma data da abertura oficial dos Jogos do Rio. Os termômetros em Los Angeles chegaram a 24 graus no máximo durante a prova.
 
O grande problema foi a umidade relativa do ar, com pico de incríveis 95%, aproximadamente o dobro do que é considerado ideal para um ser humano. Com isso, Gabriele e provavelmente as demais competidoras tiveram muitas dificuldades para transpirar, elevando a sensação térmica e culminando com o estado de desidratação.
 
Perda do último ponto de água
Para piorar, devido ao cansaço e ao desgaste físico e mental, ela perdeu o último ponto de água da maratona e por isso não conseguiu se hidratar. Mais tarde, ela reconheceu que sua preparação não havia sido a ideal, por não ter se aclimatado devidamente a Los Angeles.
 
24 minutos atrás do ouro
Ela terminou a maratona na 37ª posição, com o tempo de 2h48min42, pouco mais de 24 minutos atrás da campeã, a americana Joan Benoit. Apesar da dificuldade, Gabriele chegou à frente de outras sete atletas, entre elas a brasileira Eleonora Mendonça, que foi a última colocada. Outras seis não concluíram a prova.
 
A maior lembrança
“Com a minha idade na época (39), aquela era minha última chance de terminar a maratona olímpica. Não podia perder aquela chance. Por isso, a maior lembrança que guardo daquele dia foi ter cruzado a linha de chegada.”
 
Recuperada após duas horas
Pelo esforço, ela chegou a ser criticada por ter colocado sua saúde e quem sabe até sua vida em risco. Inclusive, recusou ajuda para concluir a prova e ser atendida antes da linha de chegada, o que resultaria em desclassificação. Mas nada de ruim lhe aconteceu, foi socorrida por médicos no estádio e levou cerca de duas horas para se recuperar. 
 
Uma lenda desconhecida entre os hóspedes
Outra paixão dela são as flores e a jardinagem. Durante dez anos, ela trabalhou como florista no Sun Valley Resort, o maior da região. Gabriele era responsável pelos arranjos no saguão de entrada e no restaurante e também foi instrutora de ski para os hóspedes, quando passou lições na maioria das vezes como uma ilustre desconhecida.
 
Seu marido, o americano Dick Andersen, ainda trabalha no mesmo resort. Eles estão casados desde 1975, dois anos depois de Gabriele ter deixado a Suíça para morar nos EUA. Sem filhos, eles se dedicam a cuidar dos dois gatos himalaia que a ex-maratonista ganhou anos atrás.
 
Sem medalha, mas com disposição nota 10
“Atualmente, eu gosto de fazer minhas atividades e praticar esportes pela manhã, principalmente no verão. Saio para jornadas de bicicleta pelas estradas ou de mountain bike nas muitas trilhas da região. Levo em média duas ou três horas de percurso. Também faço um pouco de musculação e pratico natação duas vezes por semana.”
 
Nem o rigoroso inverno atrapalha
“Eu tenho uma grande casa com jardim, e é aqui que eu passo muito tempo. Quando chaga o inverno, eu pratico o ski alpino, mais dedicada ao cross country e também ao snowboard.”
 
Campeã veterana
Depois da histórica maratona de Los Angeles, Gabriele ainda correu maratonas e dedicou-se a provas de cinco e 30 quilômetros. Na categoria máster, venceu vários títulos e quebrou diversos recordes nos EUA. A carreira nas corridas de rua só terminou em razão de uma cirurgia no joelho esquerdo.
 
Não à corrupção e sem medo do Zika
Gabriele também tem um recado ao Brasil. Assim como ela, o país está cambaleando e tentando se reerguer. O que alguém que já passou por esta situação teria a dizer, se tivesse a oportunidade, aos governantes brasileiros?
 
“Combatam a corrupção e procurem melhorar a vida das pessoas mais pobres. Quanto aos Jogos do Rio, eu vou assistir pela TV. Não pretendo viajar nem recebi convite. Não teria qualquer tipo de receio de ir ao Rio, como em razão do vírus Zika, pois há várias maneiras de se proteger.”
 
Bem longe das passadas de Joaquim Cruz
Foi algo tão impressionante e dramático que a sua última volta na pista do Coliseu de Los Angeles (a mesma que consagrou Joaquim Cruz com o ouro nos 800 metros) durou exatos 5 minutos e 44 segundos. Como comparação, o brasileiro levou o ouro ao completar duas voltas na pista em 1 minuto e 43 segundos.
 
“Merecia ouro, prata, bronze e uma estátua”
Um jornalista americano escreveu na época que Gabriele, mesmo atrás de outras 36 competidoras, merecia receber não só a medalha de ouro, mas também a de prata e a de bronze, além de ter uma estátua erguida em frente ao Coliseu de Los Angeles.
 
Uma vencedora esquecida na história
Anos depois, a vencedora da prova tentou esconder um pouco de sua mágoa por ter sido praticamente esquecida diante do momento proporcionado por Gabriele. A americana Joan Benoit declarou que considerou o esforço da suíça “de enorme coragem” e tinha um único comentário a fazer: “Ainda bem que todas conseguiram completar a prova sem maiores problemas”.
 

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