Técnica perdeu aluno por pai não aceitá-la e agora treina vítimas de abuso
Luiza OliveiraDo UOL, em São Paulo
Ita Maia mal entra em quadra e sai esbravejando com os meninos que estão batendo uma bolinha. ‘Vamos jogar agora. Saiam daqui, andem logo’. Os meninos abaixam a cabeça e obedecem às ordens, já sabem que ali não tem muita conversa. Antes mesmo de eles chegarem ao portão, ela posiciona os cones em campo e dá o apito inicial. São 19 h em ponto e ela tem pressa para começar o treino do Asape no CEU de Guaianazes, comunidade da Zona Leste de São Paulo.
Ita Maia é brava mesmo, do tipo que mete o pé na porta. E se orgulha disso. Foi o jeito que encontrou de ser respeitada. Mais que isso: foi o jeito que encontrou de viver quando viu que nada ia ser fácil. Afinal, ela é mulher, negra, nordestina e ainda teve a audácia de se meter em um esporte de homens: o futebol.
(Esta reportagem faz parte do Especial #QueroTreinarEmPaz. Quando decide praticar esporte quase toda mulher enfrenta uma série de dificuldades que não deveriam existir. Dificuldades que homens não enfrentam. Se você, só porque é menina, já teve problema para praticar esporte, conte sua história nas redes sociais usando a hashtag #QueroTreinarEmPaz)
Foi com essa braveza que ela saiu de Irecê, no sertão da Bahia, e foi vencendo cada obstáculo, cada ato de machismo, um a um. A primeira lembrança é ainda dos tempos de criança quando o tio deu uma sonora bronca: ‘Onde já se viu menina brincar de bola? Tem que brincar de boneca’.
Anos mais tarde, se depararia com o dirigente que só criava empecilhos para o time feminino de futebol. Ela também se lembra bem de quando se candidatou a uma vaga de emprego para dar aula em uma das franquias do Chute Inicial, escolinha de futebol do Corinthians. Acabou preterida por um colega que tinha um currículo bem menos qualificado, mas possuía uma característica determinante: era homem.
Mas um dos episódios que mais a chateou foi quando assumiu o lugar de um professor no clube Elite e encontrou rejeição dos próprios pais dos alunos. “Eu tive uma situação bem marcante de um pai que trouxe o filho para o primeiro dia de aula como de costume. O filho já estava havia uns dois, três anos na escolinha. Quando ele chegou lá e não viu o professor, ele se assustou. Perguntou: ‘cadê o professor tal?’. ‘O professor tal não está, a partir de hoje sou eu quem vai comandar’. ‘Ah você? Tá bom. Você não sabe onde ele está?’. Aí ele pegou a criança e saiu assim, nem sequer deu a oportunidade de eu mostrar meu trabalho, de a criança ia gostar ou não. Ele foi muito direto e objetivo. ‘Mulher. Não vai dar certo, não serve, não gostei, não aceito’. Foi isso que ele passou para mim”.
Ita já até se acostumou com esse tipo de situação. Desde que veio para São Paulo, jogou em alguns times como o Corinthians e Inter de Limeira e trabalhou como técnica em várias equipes e escolinhas. Os dez anos como atleta e treinadora das categorias de base do Elite serviram como lição.
“Era muito difícil ter mulher no comando. E quando eu me apresentei à frente da equipe de base tinha um grande preconceito. O clube não aceitava aquilo, não via com bons olhos. Comecei a tocar tudo com muita rejeição. Tudo o que podiam nos tirar, nos tiravam. ‘Ah... o feminino tem duas horas de treino? Então dá só uma’. ‘Não tem bola, não tem colete, se vira’. E a gente sempre dava um jeito. ‘Tem um campeonato, mas nós não vamos pagar taxa’. ‘Vai ter o campeonato, mas a gente não dá transporte’. Eram várias barreiras, todas as dificuldades possíveis para tentar nos enfraquecer, e a gente sempre se encorajando, se empoderando não sei do quê”.
Hoje ela usa toda essa trajetória para encorajar mulheres que sofreram tanto ou mais que ela. Meninas vítimas de abuso sexual, de violência doméstica, que se envolveram com drogas ou que se tornaram mães precocemente. Todas excluídas da sociedade por algum motivo que, juntas, encontram no esporte a força para lutar.
Elas fazem parte do Asape, time que Ita criou há 12 anos e já atingiu alguns feitos: títulos dos Jogos Regionais e três atletas convocadas para a seleção brasileira de base. Por conta de uma mudança no comando técnico, só uma delas chegou a se apresentar e a treinar por duas semanas na Granja Comary com o time sub-15. Mas cada passo é motivo de orgulho para um time que não é considerado de ponta.
“O instrumento do esporte como empoderamento é muito importante porque é difícil ver mulheres no comando. E quando isso surge, isso nos fortalece. Porque é um campo de muitas dificuldades, de carência total e desprezo. Porque ser mulher já é difícil, ser nordestino já é duas vezes difícil. Você vive num mundo totalmente dominado por homens, e a gente se vê muito desacreditada em algumas situações. Mas ao mesmo tempo a gente se vê forte de acreditar no próprio trabalho, de querer provar quem somos, não para os outros, mas de se auto afirmar em alguma coisa que você acredita e gosta”, disse.
Não à toa ela se tornou uma referência para as meninas, às vezes até mais que uma mãe. É ela quem as encoraja na busca dos sonhos, quem guarda os maiores segredos, quem diz aquela palavra certa na hora certa. Tudo isso mesmo sendo brava, chata mesmo.
“Muitas das meninas, na situação em que elas vivem, não têm uma formação boa, de repente não têm referência de pai e de mãe. Muitas veem na treinadora uma pessoa firme, decidida e que não abandona a sua luta. Isso é muito bom. Outro dia, a gente estava vindo de um jogo, e o motorista estava correndo muito. E eu falei: ‘não dá para ir mais devagar? Eu tenho medo’. E uma aluna falou: ‘você tem medo?’. E aquilo me chamou a atenção porque veio de uma criança de 14 anos. Ela quis dizer que me via como uma pessoa forte, e uma pessoa forte não pode ter medo”.
É essa força que ela quer passar para as suas pupilas. O amor pelo esporte é exercitado diariamente, mas sem qualquer romantismo. Ela é bem cética quanto ao futuro do futebol feminino e passa longe do perfil sonhadora: prefere ser realista. Por isso, faz um alerta duro às suas pupilas: 'estudem e não acreditem no futuro como atleta'.
“Trabalho com muita sinceridade com meu grupo. Pode sonhar? Pode. Pode ter ídolos? Pode. Todo mundo pode, porém não é nossa realidade. A gente sabe disso. Vai estudar, se der para associar os dois, ótimo, bacana. Eu prefiro que elas vivenciem a prática do esporte, mas que possa sonhar com um futuro dentro de outro segmento, onde elas vão ter certeza que vai acontecer alguma coisa boa que dependa só delas”.