Olimpíadas 2016

Atleta morou em Corcel II e quase foi preso antes de alcançar vaga olímpica

Divulgação CBAt
O atleta recebeu uma oferta para virar traficante quando tinha 18 anos e confessa que a tentação foi grande imagem: Divulgação CBAt

Felipe Pereira

Do UOL, em São Paulo

Altobeli ouviu um ultimato da mãe: "ou volta para o emprego e larga o atletismo, que é coisa de vagabundo, ou sai de casa". A mudança durou minutos. No alto de seus 18 anos, tudo que ele tinha coube numa mala. O novo lar era um Corcel II.

"Morei quase 30 dias até eu conseguir morar de favor nos fundos da casa da minha ex-sogra. Era um cômodo só e fiquei lá durante um bom tempo". 

As noites no banco de um carro 1982 e o dia em que quase foi preso após passar a noite em um albergue não foram as piores da vida do representante brasileiro nos 3.000 m com obstáculos nos Jogos Olímpicos. Ruim mesmo foi dormir várias vezes na rua quando era adolescente.

“Passei o Ano Novo na rua olhando as estrelas no céu. Pegava caixa de papelão, arranjava um canto pra dormir. Arranjava uma casa baldia porque em banco de praça tinha medo. Acordava e ia cuidar de carro na cidade para arrumar algum dinheiro, moeda, esmolas dos outros para comprar pão. Pedia marmita em restaurante. Isso eu não tenho vergonha de falar”.

Comprido e magricelo como todo bom corredor de fundo, Altobeli Santos da Silva tem 25 anos, mas às vezes parece um adolescente. Olha para o céu quando passa avião e ainda solta pipa. Em outras, assume postura séria como um pai de família. Nascido em Cataduva, ele não alonga a letra R como fazem as pessoas do interior paulista. Ainda tem um surpreendente sotaque mineiro.

A personalidade esportiva também é diferente. Mesmo passando por poucas e boas, não usa o discurso de dedicação e abnegação, algo para lá de comum dos esportistas brasileiros. Altobeli não esconde erros cometidos. Explica que somente com o amadurecimento, que veio ao longo do tempo, deixou uma rotina relapsa com a carreira.

Infância com laranja e sem Danone

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O corredor não passou fome quando criança, mas tinha somente o essencial para viver. Ele diz que não era destes que comiam coxinha no intervalo da aula. Bolacha recheada e Danone foram os sonhos de consumo não realizados na infância.

O que ele conheceu nesta fase da vida foi o trabalho. Criança que queria fazer coisas de adulto, ia com a mãe e o pai de criação para laranja – regionalismo para trabalhar na colheita da fruta. A experiência durou pouco porque foi proibido de acompanhar o casal. Na escola, ele era bom apenas em educação física, algo que viria a se arrepender quando adulto.

O tempo longe do trabalho não durou muito e Altobeli voltou a fazer bicos na adolescência. Um deles mudou sua vida. Quando tinha 17 anos percorria Catanduva entregando panfletos de supermercado e viu a propaganda de uma corrida de 10 km no domingo. O vencedor ganharia uma moto. "Eu falei: se eu ando o dia inteiro no sol quente, eu tenho condição de ganhar essa moto. Tentei e fui 33º".

No dia seguinte um funcionário da prefeitura bateu na porta da casa de Altobeli. Ele ouviu que era um futuro atleta olímpico. Havia terminado na frente pessoas que treinaram anos.

Daquele segunda-feira em diante, ele pulava da cama às 5h para treinar e fazia uma segunda sessão no horário de almoço. Na mesma época, começou a trabalhar como entregador de móveis. A rotina durou até a prefeitura oferecer uma bolsa de R$ 200 para deixar o serviço. Altobeli adorou. A mãe não engoliu trocar um salário mínimo por uma merreca, expulsou o filho de casa.

“Cheguei a desejar ter outra mãe"

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A relação com a mãe nunca foi boa e a adolescência potencializou as diferenças. O ápice ocorreu quando Altobeli tinha 16 e 17 anos. Se chegasse em casa tarde, era proibido de entrar. Assim aprendeu a se virar na rua. Logo os pontos para achar papelão e as casas abandonadas de Catanduva estavam mapeadas.

"Ela foi muito rígida. Tão rígida que cheguei a desejar outra mãe, ter a mãe do meu amigo porque achava a mãe deles melhor do que a minha".

Do Corcel II para o camburão

A descoberta do talento de Altobeli dependeu de uma moto e levou o rapaz a morar num carro velho. Com os treinos e a previsão de que seria um atleta olímpico, ele passou a correr provas da região. Foi expulso de casa pela mãe. O Corcel II servia de casa e meio de transporte, mesmo sem ele ter carteira de motorista. Tinha tudo para dar errado.

O carro tinha um buraco no tanque, o marcador de combustível estava estragado e o vidro não parava fechado. Começava a tremer a partir de uma velocidade que ele nunca descobriu porque o velocímetro estava quebrado. O atleta cansou de correr até um posto depois de empurrar o Corcel II.

Mas como os vencedores das provas de 5 mil metros e 10 mil metros ganhavam prêmios em dinheiro, ele se aventurava nas estradas. Certa vez, ficou num albergue para moradores de rua. Ao acordar, percebeu que a porta estava fechada e as outras pessoas tinham ido embora. Foi parar na frente da delegada.

"Os moradores de rua tinham saído às 5h30 . (Eu) gritava e ninguém atendia. Peguei um pedaço de madeira que tinha lá e comecei descascando a porta para arrebentar e sair. Escutaram, chamaram o responsável que perguntou o que fiz ali. Falei: 'você não tava aqui e fiquei apavorado'. (Ele) chamou a polícia e fui de camburão algemado".

Altobeli foi fotografado, fichado e liberado. Nunca mais teve problemas com a polícia, mas não significa que parou de dar mole para o azar.

Tentação do tráfico foi vencida através da música

Vaughn Ridley/ Getty Images
imagem: Vaughn Ridley/ Getty Images

O corredor se criou numa área pobre de Catanduva e muitos de seus amigos se tornaram traficantes. Ele já estava com mais de 18 anos e vivendo do atletismo quando recebeu a oferta para se juntar aos companheiros de infância.

"Eu tive 95% de oportunidade para ser uma pessoa ruim, entrar na criminalidade. Ofereceram para mim fazer tráfico de entorpecentes, estas coisas. Vender de tudo, maconha, cocaína. Falou: vem aqui. Para com este negócio de ficar sofrendo. Aqui você vai ganhar dinheiro".

Altobeli conta que realmente considerou a proposta porque não tinha nada e via os amigos com moto, casa e ostentando roupa de marca, tênis importado, corrente de prata. Mas sabia que estaria dando um passo errado e teve uma ajuda do rap para resistir - do Racionais Mc’s para ser exato.

"Tipo assim, eu escuto o rap, mas interpreto de uma forma diferente. As letras de rap, eles falam para você não entrar na criminalidade. A letra diz para você se afastar daquilo que é ruim, foi isso que eu captei e me ajudou".

Altobeli não teve uma epifania na vida. Ele conta que conforme virava adulto afastava as ideias ruins e solidificava a dedicação ao esporte. Aos poucos, parou de andar com os amigos que um dia estavam na rua e no outro numa cela. Percebeu que não eram companhias para um atleta que sonhava com a Olimpíada.

“Um dia tava bravo, revoltado com a vida sem saber o que fazer. Prestei atenção na letra daquela música ‘Um desafio’ que fala: é necessário sempre acreditar que o sonho é possível, Que o céu é o limite e você, truta, é imbatível. Que o tempo ruim vai passar, é só uma fase. E o sofrimento alimenta mais a sua coragem'. Ia fazer 20 anos".

Primeira viagem de avião e vaga olímpica sem técnico

Nesta altura da vida, Altobeli participava de provas da região em todo final de semana e "fazia a limpa" na premiação. Conseguiu alugar uma casa e financiar móveis e uma moto. Perto de fazer 21 anos, ele ficou entre os cinco primeiros no ranking nacional e ganhou o direito de participar do GP Brasil em Fortaleza. Isto significava voar pela primeira vez.

“Cheguei junto com atletas de grande nome, atletas patrocinados. E eu com uniforme do interior. Subi pro alto e me assustei com aquele negócio. Falei: 'cara como um negócio deste tamanho consegue subir, voar? Que coisa que o homem fabricou!' Fiquei espantado com aquilo".

Altobeli focou nos treinamentos. Mas isto significava estar longe de um trabalho científico, com equipe multidisciplinar e estes clichês de cartolas. Ele corria quanto achava que era necessário porque não tinha técnico. E este período durou até maio, ou seja, não faz nem um mês que o atleta olímpico tem treinador.

O índice para Rio-2016 foi obtido em abril, sem acompanhamento de ninguém. Altobeli sequer fazia academia e não foi ensinado como passar pelos obstáculos da prova em que compete. Ainda assim, quando ganhou o ouro no Troféu Brasil no último domingo, foi chamado de canto por Zequinha Barbosa.

O ex-atleta deu vários conselhos e disse que se Altobeli for treinar fora do país tem grande chances de medalha nas Olimpíadas de 2020. "Só falta chamar", foi a resposta que ouviu. Para ter uma ideia da distância que ele vive dos grandes nomes, Altobeli tem três patrocinadores de empresas de sua região: Restaurante Vitória, Jão’s Barbearia e Matilat.

Felipe Pereira
imagem: Felipe Pereira

Ele quer que sua história vire um exemplo

O corredor deseja uma carreira vencedora, porque no futuro quer visitar orfanatos e projetos sociais para contar a crianças que gente saída do nada pode dar certo na vida.

“Quero que eles olhem minha história um dia. E pra ser exemplo preciso fazer diferente, ainda não fiz. Ir além, muito além do que já fui para poder que falem: 'se este cara conseguiu, também posso'. Um cara que já passou fome, pediu coisas nas casas, morou na favela".

Por este motivo, Altobeli luta para ser o melhor atleta e a melhor pessoa que pode ser. Ter sucesso somente no primeiro objetivo não vale.

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