Olimpíada já tira o sono de Micale. Ele diz o que espera de Neymar e Tite
O Rogério Micale que se apresenta ao Brasil para as Olimpíadas já não é mais um sujeito comum. As caminhadas em Belo Horizonte, na Lagoa da Pampulha com a esposa Silvana e o cachorro Toddy, para conversar sobre a vida, já não são mais as mesmas. O assédio cresceu sobre o baiano de 47 anos que recebeu a incumbência de tentar o ouro do futebol masculino no Rio de Janeiro. Só há uma coisa absolutamente intacta no treinador: o conceito.
Micale é absolutamente fiel e não negocia uma seleção brasileira ofensiva, veloz, com triangulações, defensores adiantados e a promessa de explorar o talento. Nesta entrevista exclusiva ao UOL Esporte,o treinador que fez fama na base nacional por equipes quase suicidas explica seu plano para os convocados. Em especial, tudo o que espera de Neymar: "quero que ele sinta prazer de estar ali", resume.
De Tite, o treinador olímpico admite até buscar dicas para uma equipe mais equilibrada para conquistar o ouro. Não pela fama, porque isso importa pouco para o pacato Micale. Não para que os passeios na Lagoa da Pampulha não sejam mais notados. Mas para afirmar suas ideias, o que move Rogério no maior desafio da carreira.
Confira a entrevista exclusiva:
UOL - Tite sugeriu nomes na sua lista? Pergunto de dois em particular: Fernando Prass e William, lateral do Inter.
Micale - Eu até gostaria que tivesse sido dessa forma, mas não foi. Até porque quando houve a comunicação que eu iria assumir a seleção olímpica, eu não tive nenhum tipo de contato com o Tite. Até porque ele não havia sido confirmado treinador da seleção. Não teve como conversar ou ter algum tipo de acesso com a pessoa que ainda não estava definida.
UOL - Foi tudo muito rápido, realmente.
Micale - A partir daquele momento eu tive 12 horas para fazer a relação (com 35 atletas). Fui avisado à noite e no outro dia tive que entregar até as 16h. Não houve nenhuma conversa anterior, nenhum tipo de indicação, nenhum nome relacionado à sugestão. Até gostaria que fosse, até porque um treinador como Tite, com experiência que tem, seria sempre bem vindo. Qualquer tipo de comentário. Infelizmente se falasse que houve a participação eu estaria faltando com a verdade.
UOL - Nem depois da relação de 35 nomes? Na montagem dos 18 convocados.
Micale - Não tivemos essa indicação. As conversas com Tite foram em relação a sistema, ao modelo de jogo, a ideias de como eu poderia aproveitar uma situação ou outra de um jogador. Depois, na sequência, quando foi tudo apalavrado, começamos a trabalhar em termos de unir, de juntar, de conversar sobre ideias de jogo. Querendo ou não, estou há mais tempo na seleção, existe todo um trabalho que é diferente de organizar o tempo. O que eu puder ajudar, vamos trocar ideias. O Tite é super aberto, busca informação para trabalhar da melhor forma possível. Da mesma forma do meu lado. O que eu puder sugar da capacidade que ele tem de gerir grupo, de montagem, farei sem nenhum tipo de reservas.
UOL - Do que conhecemos o Tite, ele não tomará iniciativas para interferir no trabalho. Em que situações você pretende fazer contato com ele?
Micale - Gostaria do Tite ao meu lado todos os dias. Sei que não é possível pelas atribuições dele na equipe principal. Vou me sentir realizado, lisonjeado em ter uma referência como o Tite é no nosso futebol para trocar ideias. Todas as vezes em que eu puder acioná-lo, falar de jogos, de treinamentos, de otimizar tudo porque seleção é diferente de clube, e precisamos criar métodos diferentes para implantar ideias em espaço curto de tempo, vou fazer. Tudo o que eu puder, vou sugar.
UOL - Por mais que goste de equipes que proponham o jogo, Tite também joga pelo resultado em algum momento em que isso é preciso. Vejo você mais firme a esse conceito de um jogo ofensivo, de não negociar isso, como dizemos. Por exemplo, o Brasil perdeu a final do Mundial Sub-20 para a Sérvia no final da prorrogação, com todo o time no ataque, porque errou uma saída da linha de impedimento. Você acha que pode ser mais pragmático na Olimpíada para defender um resultado?
Micale - É até uma ideia boa, você deu um exemplo bom. Se a gente avaliar em cima desse próprio jogo, a gente tinha acabado de perder um gol. São circunstâncias do jogo que acontecem. Mas aquilo em que se acredita, o conceito, a proposta...tem risco como tudo na vida. Se você for se basear no risco através do medo, por já ter acontecido em algum momento da história, e você perdeu algo importante...se as bolas que não entraram tivessem entrado, poderia ser não apenas 1 a 0, mas até mais. Se você avaliar só pelo lado do resultado, estaria quebrando toda essa construção de um conceito que demonstrou que é bom.
UOL - E em relação ao Tite?
Micale - O time dele é muito equilibrado. A gente via sempre muito equilíbrio entre os setores. Quem sabe isso a gente pode tirar como fator positivo, não negativo, desse equilíbrio. Vamos ser avaliados pelo resultado final. Nesse jogo (da Sérvia) fomos muito superiores, mas o final foi favorável para a Sérvia.
UOL - A seleção olímpica já mudou sua vida? Já está dando autógrafos, tirando selfies?
Micale - Mudou, mudou (risos).
UOL - Já apareceu aquele parente que estava meio distante?
Micale - Já aparece (risos). É uma mudança, é uma mudança. Quando eu fui anunciado, foram duas noites sem dormir. Fiquei ali pensando na responsabilidade. Uma noite principalmente passou muita coisa na minha cabeça. A responsabilidade que seria e mudanças que de fato ocorreram. No que representa o futebol no Brasil e seleção, traz visibilidade maior.
UOL - É algo totalmente novo, não?
Micale - Eu aprendo a lidar com isso. Não é uma situação corriqueira, eu nunca tive esse tipo de exposição. Só trabalhei com base. Mas o mais importante é que me sinto bem dentro de campo fazendo meu trabalho. Ali me preparei para executar. A gente tem que saber lidar com esse contexto todo e tenho tentado fazer da melhor forma possível.
UOL - Você consegue fazer as mesmas coisas de sempre? Ir ao supermercado, à farmácia...
Micale - Eu tento fazer. Andar com o cachorro. A gente tenta. Falei com a família sobre isso. A pessoa que iriam ver a partir de agora, o treinador da seleção brasileira, é uma pessoa comum, com hábitos comuns, com sua rotina, que faz as coisas que sempre fez. Agora nem tanto porque tem muita reunião, muita coisa tem acontecido, são mais compromissos. Isso me pegou em um período que eu já tinha coisas marcadas, curso (da CBF) que participo. Mais reunião a todo momento para buscar nova informação sobre determinado jogador, você tenta saber tudo que está acontecendo. Se tem uma novidade, um jogo para assistir.
UOL - Como é a rotina até a Olimpíada?
Micale - A rotina ficou mais intensa, mas é inerente ao cargo em que estou agora. Era uma mudança, e conversamos como família porque, se você ganha, não é o herói. A gente vai ter o reflexo disso também. A vida vai continuar, mas vai ser importantíssimo na minha carreira, um degrau a mais que a gente sobe. Se eu perder não vou ser esse vilão também. Vou continuar sendo o mesmo Rogério da família, que teve os mesmos hábitos, que gosta das mesmas coisas. No nosso núcleo familiar a gente tinha consciência que nada mudou. Mudou para o contexto externo.
UOL - Então você passa o tempo livre passeando com o cachorro?
Micale - Também. Tenho uma rotina de sair com a esposa para conversar. Moro em Belo Horizonte, na região da Pampulha, que é um lago grande. Eu moro perto, dá para ir a pé, e temos o hábito de passear ali com nosso pet. Já não está mais sendo tão tranquilo, existe um reconhecimento, mas a rotina se mantém porque penso nisso como saúde. Uma válvula de escape.
UOL - Você conversou com Dunga quando souberam que seria o treinador da seleção olímpica?
Micale - O Dunga foi extremamente correto no período em que convivemos juntos. (...) Quando aconteceu tudo, eu estava na sede. Eu tive a oportunidade de conversar com o Dunga, de me despedir, de agradecer pelo convívio e tudo que passamos. Daí em diante não tivemos mais contato. Todas as atribuições então foram conferidas a mim. Ele me desejou boa sorte, disse que eu caminhasse, que eu continuasse o processo e seguindo a ideia que ele tentou implantar. Ele foi bem cordial. Sempre tenho que agradecer ao Dunga, que sempre foi muito honesto e de convivência muito boa nos padrões profissionais.
UOL - Por falar em Dunga, também precisamos falar do Neymar. Ele não tem tido alegrias pela seleção desde a Copa do Mundo. São lesões, suspensões, derrotas marcantes. Como fazer ele ter novamente prazer com a seleção sem deixar de se enquadrar ao conjunto?
Micale - Penso que o Neymar é um talento indiscutível, um jogador excepcional, acima da média. Qualquer treinador do mundo gostaria de ter o Neymar na equipe. Ele sente prazer, sim, de estar na seleção. Pelas informações que temos, ele gostaria de estar na Copa América e nas Olimpíadas. Ele é um jogador que chegou ao nível de estrela, referência mundial, e por se colocar à disposição para servir o país, é porque sente amor, sente prazer de estar ali.
Às vezes você tem um momento bom, às vezes não tão bom. Não estou dizendo o que aconteceu ao Neymar. Ele é um ser humano como outro qualquer. Está sujeito a variações, situações, momentos, a fases da vida. Mas a pré-disposição de querer estar é um indicador muito forte de que ele gosta da seleção. Espero de coração que ele construa a história junto com aqueles que estarão juntos e comigo. É um novo momento, novo treinador, tanto na olímpica como principal. Ele vem de um descanso importante depois de uma temporada muito boa, com a pressão que o futebol oferece. Que ele chegue com gás todo, nós queremos a mesma coisa. Vamos trabalhar juntos para conquistar.
UOL - Um jogador desse tamanho na Olimpíada gera preocupação sobre privilégios. Como assegurar que o Neymar não tenha isso?
Micale - Dentro do que ele representa como referência, e ele tem ciência da responsabilidade, sabe o que ele é para o povo brasileiro, para uma juventude que se espelha nele. Ele é um jogador que já adquiriu maturidade, ainda vai adquirir. É um jovem de 24 anos que é muito cobrado. Qualquer coisa que saia sobre ele tem uma proporção muito grande. Tem que se tratar como um ser humano que todos somos. Sujeitos a eros, acertos, virtudes, falhas, tenho certeza que ele pensa que vai saber se comportar. Ele sabe a importância da medalha para nós e para ele como referência mundial, e estará enquadrado a um contexto. Privilégio é ter Neymar jogando na minha equipe. Quero que ele sinta prazer de estar ali, de viver isso, vamos usufruir todos juntos. Precisamos estar muito fechados e juntos para ter essa conquista. Por ser uma referência mundial, ele tem a proporção certa do que vai ser isso para ele.
UOL - A tendência é que o Fernando Prass seja o capitão?
Micale - Não posso falar isso porque vou conviver com Fernando, com Marquinhos, com Rodrigo (Caio), com William, com uma série de jogadores que não convivi. O Rodrigo Caio era o capitão da equipe anteriormente. Importante é ter vários jogadores com perfil de liderança. Que a gente consiga criar o ambiente em que todos são responsáveis por tudo. A faixa representa uma pessoa para falar com árbitro e com questões do jogo que se desenvolvem. Não vejo necessidade de se definir isso no momento. Neymar é uma referência, ele era o capitão e vamos tratar isso da melhor forma possível.
UOL - Por sinal, você gosta de desafiar os goleiros a jogar mais com os pés, a sair da área para interceptações. É possível fazer isso com um veterano de 37 anos como Prass?
Micale - Acredito perfeitamente que existe hoje comprovado que, através dos treinamentos, metodologias, estímulos que o atleta recebe, que ele tem capacidade de agregar esse tipo de conhecimento. Vai ser estimulado. Vejo uma capacidade, uma personalidade definida. Liderança e coragem que é importante. Já vejo ele fazer isso no clube de origem, interceptando bolas do jeito que eu gosto, é um princípio que ele já executa. Muitas vezes, a gente busca em qualquer atleta a totalidade das qualidades referentes ao nosso modelo. Se não atingirmos a totalidade, ele tem características e capacidade de fazer parte do processo da seleção olímpica. Ele foi escolhido pela grande maioria das qualidades que vemos hoje como importantes para um grupo que será esse da Olimpíada.
UOL - Há a sensação geral que, pela quantidade de atacantes jovens, o Douglas Costa não era um candidato à Olimpíada. Por que a escolha dele?
Micale - A escolha dele é pela qualidade indiscutível. Quando temos um jogador nosso, brasileiro, com esse padrão de qualidade indiscutível, qualquer treinador gostaria de contar, mesmo com tantas opções que realmente temos. Existem também várias alternativas para inserir no contexto de equipe.
UOL - Você pretende resgatar o Douglas para a função de meia? O melhor momento dele foi pelo lado esquerdo.
Micale - Do lado esquerdo também temos Neymar, que é uma referência mundial. Já são dois (risos). O que pretendo com a característica dessa equipe é que ela seja organizada, mas que em algum momento a gente gere o caos. E que isso gere desconforto no adversário e não na nossa equipe. Temos que criar essa mobilidade, essa versatilidade, porque todos podem executar dessa forma. Não sou muito preso a quem deve estar preso a um setor, fixo a um lugar. O Douglas é indiscutível, desperta um respeito muito grande nos nossos adversários.
UOL - O Brasil se acostumou a levar zagueiros experientes para Olimpíada, como Aldair e Thiago Silva. Você optou por não levar. Isso tudo te preocupa?
Micale - O que vejo é que o Marquinhos hoje tem muita rodagem na seleção principal. Já é uma realidade. Por mais que ele tenha idade olímpica, em termos de experiência é um jogador de relevância muito grande hoje nessa ideia. Só é novo. Mas tem uma bagagem, experiência, joga em um grande clube na Europa (PSG) e tem 11 jogos pela seleção principal. Tem esse perfil de liderança.
UOL - Sobre a questão da estatura. Todos são baixos para a posição. Isso te preocupa?
Micale - Em relação à estatura, o Thiago Silva não é tão maior que Marquinhos, Rodrigo e Luan. São muito próximos de estatura. São jogadores leves, ágeis, e para o modelo de jogo que queremos implantar se exige uma recuperação muito forte. Eles se enquadram no perfil de equipe mais que em características individuais. Estão inseridos dentro de uma montagem de equipe. Compete ao treinador criar uma forma de jogo que, se vier a existir dificuldade na estatura, que se consiga minimizar. É explorar o que eles têm de melhor. Os pontos positivos são muito maiores que qualquer negativo.
UOL - Só uma pergunta sobre jogador fora da lista. O gremista Walace, que até foi à Copa América, era uma escolha do Dunga?
Micale - São preferências, né? E na verdade é uma relação que não pode convocar 22 jogadores. Temos que estar atentos a possibilidades de que possam vir a acontecer em termos de lesão, cartões, uma série de coisas. A versatilidade em um momento desses, e é um excelente jogador, perfil excelente, mas o treinador infelizmente conta com 18.
UOL - Rodrigo Dourado pode ser zagueiro, o Thiago Maia pode ser lateral esquerdo. É isso?
Micale - Você tirou as conclusões. Em uma lista tão enxuta, tem que se aproveitar ao máximo, se visualizar ao máximo. Não quer dizer que não possamos cometer erros, mas tivemos que tomar as decisões.
UOL - Quais as condições físicas de Fred e Rafinha? O primeiro estava suspenso por doping, já o segundo operou o joelho em 2015.
Micale - O Fred, desde o dia 11, está treinando normalmente, incorporado na sua equipe, em pré-temporada, em atividade no Shakhtar. Como qualquer outro jogador que vem da Europa, ele ainda está na frente porque já vem treinando. Não vejo dificuldade. Tem uma característica muito importante, se enquadra no perfil, já atuou desde a base em todas as posições de jogo. Começou como lateral esquerdo, como volante, como meia ou atacante de lado. É uma qualidade, entendimento de jogo, versatilidade, um jogador muito interessante.
Já o Rafinha da mesma forma. Ele já vem fazendo recuperação. Saiu da Copa América e não parou. Já estava trabalhando em particular com um preparador. Eu falei com ele na semana passada e ele vem trabalhando normalmente. Ou seja, também está à frente de alguns na parte física.