Outro escândalo de doping está prestes a estourar, ferindo ainda mais o Comitê Olímpico Internacional (COI) às vésperas dos jogos no Rio. Desta vez, envolve a International Boxing Association (AIBA), a entidade mesquinha que atua como uma associação internacional de boxe amador.
Em dezembro do ano passado, empregados da sede da AIBA, em Lausanne, na Suíça, admitiram para inspetores da Agência Mundial Antidoping que não haviam feito, fora da época de competição esportiva, quase nenhum teste nos últimos três anos. Chegaram a zero teste em 2015, ano pré-olímpico. O documento de 27 páginas produzido em seguida pelo inspetor e analisado pela reportagem é condenatório.
“Ao longo dos últimos anos, a AIBA tem implementado um programa antidoping bastante limitado, fazendo um trabalho meia-boca não só por não atender aos requisitos da Agência Mundial Antidoping, mas também por não proteger o esporte e os atletas que são ficha limpa dos riscos do doping”, diz o documento. “O programa de testes da AIBA que ocorre fora da época de competição esportiva praticamente inexistiu nos últimos três anos, e apenas 19 amostras foram coletadas (18 em 2013, 1 em 2014 e nenhuma em 2015). Este representa o número mais baixo entre os 28 esportes da Olimpíada.”
Já que a coleta de informações e inteligência são essenciais para realizar testes de maneira eficaz, os inspetores ficaram chocados ao descobrir que “a AIBA não possui a estrutura necessária para coletar ou processar esse tipo de informação”. Depois de listar outros “déficits”, o relatório conclui: “É altamente recomendável que a AIBA considere com urgência um plano de antidoping estratégico e operacional que tenha como meta cumprir as normas internacionais”.
Resumindo, a AIBA não cumpre as normas.
Se o presidente da Agência Mundial Antidoping, sir Craig Reedie, da Escócia, que é também vice-presidente do COI, quiser tornar público esse documento, é difícil imaginar como AIBA poderá participar da Olimpíada daqui a dois meses.
Escândalo também nas finanças
Como se isso tudo já não fosse o suficiente, a AIBA também está imersa em um escândalo financeiro. A reportagem teve acesso a um documento “estritamente privado e confidencial” da divisão forense da rede de contadores PricewaterhouseCoopers (PwC), empresa britânica que oferece serviços de auditoria. Ele revela que milhões de dólares não foram contabilizados na prestação de contas anual da associação.
Durante a investigação, que recebeu o melodramático codinome de Projeto Tigre, os auditores da PwC descobriram que em 2010 o presidente da AIBA, Ching Kuo Wu, assinou um “pedido de empréstimo” com uma companhia do Azerbaijão um tanto obscura. O dono dessa companhia é Kamaladdin Heydarov, que antes liderava o serviço corrupto de alfândega do país e agora comanda um império de empresas que englobam áreas desde construção até turismo. E tudo isso enquanto ocupa o cargo de “ministro de Situações de Emergência” no Azerbaijão.
De acordo com a PwC, Heydarov tem “uma reputação não confiável no mercado”. E o mesmo pode ser dito sobre a AIBA, já que os auditores notam que o empréstimo “não foi contabilizado corretamente nos registros financeiros da AIBA”, uma prática que viola o código criminal suíço. O empréstimo de US$ 10 milhões, que chegou até a acumular juros de US$ 498 mil, deveria ter sido pago em novembro de 2013, mas o pessoal do Azerbaijão não está interessado em receber o dinheiro e parece mais preocupado com o empenho dos seus atletas no Rio de Janeiro. Não houve nenhuma reclamação do comitê de auditoria e finanças da AIBA possivelmente porque o presidente Wu o dissolveu.
Sob os auspícios da AIBA, o empréstimo supostamente daria início ao Campeonato Mundial de Boxe nos Estados Unidos. Quatro companhias do Campeonato Mundial de Boxe foram estabelecidas, mas US$ 1 milhão “desapareceu” rumo ao México. Wu insiste que ele “não recebeu um centavo”, mas é difícil realmente saber onde foi parar esse dinheiro porque a PwC não encontrou notas fiscais ou “documentação de apoio” para comprovar como foram gastos os US$ 4,3 milhões em pagamentos. O documento observa que, além de Wu, “nenhum outro membro da gerência executiva estava ciente dos termos do empréstimo e em particular do papel da AIBA como fiador”. Esse entendimento só mudou em junho passado, quando o diretor executivo da AIBA, Ho Kim, “levantou algumas alegações de irregularidade”.
A PwC disse que a AIBA precisa “declarar de novo”, com urgência, as suas contas dos últimos seis anos. “É recomendável que todas as companhias ou operações da AIBA passem por um processo de auditoria externa. Declarações financeiras consolidadas revelarão a verdadeira e atual posição financeira da associação.
O mais que suspeito chefe do Campeonato Mundial de Boxe
Surpreendentemente, o vice-presidente responsável pelo campeonato mundial World Series of Boxing (WSB), nomeado pessoalmente pelo próprio Wu há dois anos, é Gafur Rakhimov, figura identificada pelas autoridades norte-americanas como traficante de heroína de alto escalão e um dos líderes do crime organizado no Usbequistão. Rakhimov, que hoje reside na Rússia, visava ser introduzido na elite do COI pelo seu ex-presidente, o fascista Juan Antonio Samaranch. Mas no ano 2000, por orientação da FBI, ele foi banido da Olimpíada de Sydney para “garantir o bem-estar e a segurança da comunidade australiana”.
Em 2012, o Tesouro americano congelou todas as contas bancárias de Rakhimov ao redor do mundo, e um ano depois ele foi oficialmente declarado “membro-chave” do Círculo da Irmandade, uma entidade criminosa da Eurásia. Ele apareceu ainda mais nas manchetes há dois anos, quando o canal de TV ABC News, em Nova York, alegou que ele havia subornado membros do COI com “sacolas de dinheiro” para que a Rússia se tornasse a cidade-sede da Olimpíada de Inverno. Um porta-voz de Rakhimov negou o suborno, mas confirmou que houve “uma forte influência” de sua parte para conseguir votos para a Rússia. Depois em julho de 2014, o Tesouro dos Estados Unidos voltou a fazer acusações sobre seu envolvimento com tráfico de drogas. Quatro anos depois, Wu o escolheu a dedo para ser o vice-presidente da AIBA.
Wu ocupa também um lugar no Conselho Executivo do COI. Será que Thomas Bach, presidente do COI, consegue continuar a ignorar o fedor que a AIBA vem exalando?
*Texto originalmente publicado na revista britânica Private Eye.