O fim do campeonato dos Oompa-Lumpa e os analistas de Loompalândia

Lúcio de Castro
Colaboração para o UOL, no Rio de Janeiro
Buda Mendes/Getty Images

Noite de domingo é noite vadia, para chegar do estádio, jogar conversa fora sobre o jogo e depois ver/ouvir gente jogando conversa fora sobre futebol na televisão. É assim desde que me entendo por gente. Era só um canal. Chegava do Maraca (quando ele existia), tinha o videoteipe (!) e depois a resenha. Era uma só, na TV Educativa. Os da minha geração sabem do que estou falando. Uma só, apenas 4 canais disponíveis, nem controle remoto existia. Muita coisa mudou, os canais são incontáveis. Numa prova de que os tempos em que as mudanças se processam são diferentes, como ensinou um velho sábio francês, só os hábitos do homem seguem os mesmos. Noite de domingo ainda é pra falar e ouvir papo de futebol. E foi assim, já que as coisas mudam mas nem tanto, que zapeava preguiçoso e sem rumo certo pouco depois do apito final da última rodada do campeonato brasileiro. Diante do suco de chuchu que entrava sala adentro pela tela, comecei a ensaiar a saída, ir ouvir um pouco de samba bom e o brasileiro maior Alfredinho falar...

E eis que a zapeada fatal me paralisa diante da TV. A veemência do comentarista, a dureza das palavras, os vereditos proferidos, automaticamente congelaram o controle. Era isso mesmo? Era ele mesmo? Logo aquele, conhecido no meu pobre meio como o mais em cima do muro, considerado um gênio nas troças de corredor porque vive de ser comentarista há 20 anos sem jamais ter feito um comentário, o cara que corrobora toda fala de um apresentador com uma risadinha bajuladora, que recorre as imagens e metáforas de sempre para não ter que falar nada, sócio-proprietário do muro que habita, o mais fervoroso Múcio da história da televisão brasileira (nota aos mais novos: Múcio= personagem do Jô Soares nos anos 80 que não se comprometia jamais com nada e concordava com tudo). 
 
Pois muito bem: era ele mesmo, com a veia saltada, discorrendo sobre o fracasso e a falência do futebol carioca. Sem cerimônia alguma, pela primeira vez pulava do muro para descer a lenha.
 
Falava da estrutura falida do futebol do Rio. Dos clubes. Desfilava argumentos e, surpreendentemente era admirado pelos demais. Logo ele, partícipe sem contestação de mesa pós-copa em que se bajulava Ricardo Teixeira, alçado a condição de Midas. Também foi assim com João Havelange e com todos os cartolas do esporte brasileiro que você imaginar nas últimas décadas. Cartolas que Fernandinho Beira-Mar se negaria a estar lado a lado por princípios, elogiados por ele sem qualquer pudor.
 
Não estou aqui para qualquer defesa do futebol carioca. Fato que alguém pode gostar tanto do Rio tanto quanto eu, mas não creio que possa mais e não vejo como. Não é isso que está em questão. Obviamente que o futebol do Rio é uma droga. Qual é a dúvida? O ponto aqui é outro. E parece tão claro.
 
Particularizar esse ponto da análise agora é que está em questão. É o futebol do Rio que é uma droga ou o futebol brasileiro como um todo, já há alguns anos? A quem interessa separar e particularizar essa análise? Falo e escrevo isso há anos, sempre que volta a monótona cantilena. Lembro sempre dos inúmeros programas que discutiram nos últimos anos a decadência do futebol carioca. Muito mais numerosos do que os que discutiram a tragédia do futebol brasileiro em todos os seus aspectos. Enquanto isso se gestava um 7 x 1. 
 
Desconfie com todas as forças, nobre leitor, de quem agora faz como o sujeito do provérbio, aquele que olha o dedo que aponta em vez de olhar a floresta. Ora, o futebol brasileiro é uma tragédia. Um 7 x 1 não se faz da noite pro dia. Foi gestado cuidadosamente, e para chegarmos lá muitas contas na Suíça e alhures foram inchadas. No exato momento em que os três últimos presidentes da CBF encontram-se ou encontrarão-se em breve nas garras da Justiça, e que os mais sujos truques são imaginados para que preservem os dedos diante dos anéis que se vão, não importando para isso que o mandatário passe a ser o octogenário coronel que irá pensar as medidas de gestão com as quais enfrentaremos as Bundesligas e Champions da vida, ora, é muita desfaçatez particularizar a análise de nossas tragédias. É muita canalhice, é ser muito serviçal. 
 
Aqui temos que separar os inocentes. Existem sempre aqueles que acompanham o coro dos contentes por inocência. O coro dos contentes não, perdão, o coro daqueles que tem pés e mãos chafurdadas na lama, que bebem cúmplice o vinho caro da cartolagem, mesmo que por dentro da calça deles exista uma tornozeleira eletrônica. Sim, existem os inocentes que repetirão esse discurso, insuflados por estes outros aqui descritos. Dos inocentes tenho compaixão e a esperança que acordem desse sono profundo, que entendam o que está por trás de particularizar a análise como se a tragédia fosse regional e não um todo, fruto dos anos de desmando e corrupção do nosso futebol. Quando penso nos inocentes e nos que adoram dar o tom pra eles, lembro-me de Gerardo Caetano, o grande historiador e ex-jogador uruguaio ao falar de como futebol e política se misturam. “Aqueles que dizem que futebol e política não se misturam, ou não sabem de nada ou sabem demais”. 
 
Nem queria entrar na análise factual em si, mas apenas para me deter em um ponto, como se pode falar em fracasso ou sucesso, necessidade de rever tudo aqui e não acolá, estrutura, tudo isso apenas olhando para a tabela, quando se tem um São Paulo em quarto lugar depois de tudo o que se viu no ano tricolor. De malversação de verba a pugilato de cartola. Está melhor do que x ou y? X ou Y do Rio são uma tragédia de gestão, assim como X ou Y daqui ou acolá. Juntos, compõe esse mapa cúmplice da tragédia nossa de cada dia que se transformou o esporte que é parte fundamental de nossa cultura, fator preponderante de nossa identidade. Um cenário onde quem consegue um técnico um pouco mais atualizado do que os outros, mesmo com problemas de pagamento, de imposto, se impõe a corpos de vantagem dos outros. 
 
Na dúvida, em tempos tão embaçados e com nevoeiro tão denso, faço como sempre o velho marinheiro de Mestre Paulinho da Viola, levo o barco devagar e vou atrás das pistas daqueles que vem de longe, que sempre estiveram do mesmo lado. E por incrível que pareça, nesse cenário tão turvo, faz escuro mas eles cantam ainda por aí.
 
Afinal, qual o sentido nesse momento, campeonato fresco, carecendo de análise, de optar por particularizar o fracasso? Proteger o produto? Proteger os cartolas que deterioraram o produto ao longo desses anos e gozaram da cumplicidade sórdida de alguns? Por que não dizer que foi um campeonato onde não existiam times suficientes para ocupar um quarto posto e o nível do espetáculo beirou na maior parte do tempo ao patético? Um campeonato pavoroso, um nível técnico sofrível, tirando os jogos que foram exceção para confirmar a regra.
 
Já sei, muitos (sempre aqueles outros, que dão o tom aos inocentes) irão apelar para a imensa emoção que é o campeonato brasileiro e o futebol jogado aqui. Concordo. Camisas que dizem respeito ao nosso coração sempre terão emoção. O que está longe de querer dizer que é razoável. 
 
Costumo dizer que nada deve ser mais emocionante do que o Campeonato Nacional de Basquete dos Oompa-Lumpas (aqueles minúsculos trabalhadores da fábrica do Willy Wonka, que vieram de Loompalândia). Pelo imenso equilíbrio que certamente existe. Naquele mar de anões, costuma ganhar o time que tem um técnico que enxerga um pouco mais o jogo de basquete. Nada que justifique o comentarista de Loompalândia dizer que o campeonato de basquete dos Oompa-Lumpas é muito melhor do que a NBA, por ser tão emocionante e vários times começarem o ano em condições de chegar ao título. Se você anda escutando isso por aí e não a disposição em se sentar e analisar profundamente porque os gigantes de outrora se transformaram nos Oompa-lumpas do futebol mundial, aqueles que ninguém na Europa acompanham, desconfie. Se você anda escutando por aí que os times de determinado estado de Loompalândia é que são o grande ponto para se analisar nisso tudo, desconfie muito. Alguém está querendo te enganar. E de noite, irá brindar cúmplice o vinho dos poderosos. E rir de você. 
 
A mim, como humilíssimo operário da notícia, cabe apenas entender e registrar o que está acontecendo. Parte do meu ofício é esse. Apontar o dedo para a porta do armário onde vão guardando cadáveres. E como homem de imprensa, tentar quem sabe te contar um pouco como acontecem as coisas do lado de cá da quitanda. 
 
Nesses tempos dramáticos da vida brasileira em todos os campos, onde cada vez mais só vai existindo lugar pros inocentes e para os que dão o tom para eles, a cobertura do esporte, de maneira geral não seria diferente. Agradeço todos os dias porque, além daqueles que vem de longe e falam nisso tudo do esporte sem desistir, restam os santos de nossa devoção como Jânio de Freitas, que quando a história falar dos nossos dias atuais irá guardar a página mais nobre para quem não perfilou exaltando os Oompa-lumpas, sejam da política, do esporte ou do diabo que o valha. Aos que acreditam que apurações são determinadas para todos os lados, que jornalismo é pau pra Chico e pra Francisco, minha eterna inveja. É deles o reino dos inocentes, a felicidade eterna em passar sem sofrimento por um dos tempos mais sujos desde sempre. 
 
Quem quiser entender melhor como funciona o que se fala e o que não se fala em Loompalândia e que acredita na tese da democracia onde se fala tudo e tudo se publica, não pode perder o sempre imperdível Leonardo Padura. Em sua coluna de sábado na Folha, “Boa noite e Boa sorte”, quebrou tudo falando de censura e autocensura em diferentes contestos. A das ditaduras sim, mas a das ditaduras econômicas também. Além da genial lembrança de Mark Twain e sua espetacular sentença : “Graças ao bom Deus temos em nosso país estas três coisas indizivelmente preciosas: a liberdade de expressão, a liberdade de consciência e a prudência para nunca exercer nenhuma das duas”. Prossegue com argumentação que bate em nossas portas e entra em toda e qualquer redação, sem exceção. 
 
“Em muitas ocasiões, porém, a censura se fez presente por mecanismos menos visíveis, mas igualmente eficientes, como as preferências do mercado”. Padura segue sua prosa, até chegar em tipos que tanto conhecemos, como inclusive já referido por aqui. “O maior mal que a censura pode causar não é a proibição, propriamente dita, que por si só já constitui uma aleivosia em uma sociedade democrática: é a autocensura como forma de sobrevivência dos indivíduos, que, cientes dos limites da permissibilidade, veem-se compelidos a ater-se a esses limites e restringem seu pensamento, criação e expressão verdadeiros, deformando-os ou simplesmente ocultando-os”.
 
Com o perdão de me alongar na transcrição mas com a certeza de que cada vírgula é ouro, encerramos copiando o trecho em que Padura explica como quem está fora desse remar com a maré vai sendo alijado. “Hoje, uma das formas de censura mais praticadas, por acreditar-se que seja menos evidente, é a invisibilização de pessoas cujo pensamento e cuja imagem os grupos de poder midiático, político ou social não querem que sejam promovidos”. Multiplique isso por 100 quando o assunto envolve grandes cifras, direitos de transmissão, seja de Copa do Mundo, seja de meros campeonatos de sub-20. Quantas vezes vemos por aqui quem desafina o coro dos contentes fora do jogo, como explica Padura? Mas sempre vale, como ensinou outro grande, o velho Darcy, a dignidade da derrota do fora do jogo do que o vinho envenenado da cumplicidade escroque.
 
Por fim, vale a lembrança de Glenn Greewald, em uma das mais acertadas definições sobre tudo isso. “Quem obtém sucesso no jornalismo corporativo tende a fazer a vontade de quem está no poder. Essas pessoas se identificam com a autoridade institucional e sua habilidade está em servi-la, não em combatê-la”. 
Muita gente e muito jornalista foi pra rua, morreu ou padeceu nas masmorras para que chegássemos até aqui sem sermos dignos dos seus passos. Para que se drible o cerne das questões preferindo apontar o dedo para falsos dilemas.
 
Alguém há de dizer: tudo isso até aqui escrito, passando por Padura, Darcy, Jânio, Juca, Mark Twain, Gerardo e Greenwald e outros tantos, por causa de um comentário, mesmo que tal comentário vá se repetir com insistência nesses dias, seja por inocentes ou não inocentes? Sim, tudo isso por causa de um comentário. Porque quem não entende que existe muita coisa por trás desse comentário que estrategicamente livra o autor de ter que apontar o dedo para as verdadeiras questões, quem não entende, “ou não sabe nada ou sabe muito”.