'Acharam que poderiam brincar com instituições': diz juíza do caso Lochte

Gerardo Lissardy
Da BBC Mundo, no Rio de Janeiro
Divulgação/BBC
Juíza Keyla Blank de Cnop, que estava cuidando do "caso Lochte"

Quando recebeu a denúncia de um assalto a Ryan Lochte e outros três nadadores americanos, a juíza Keyla Blank de Cnop não imaginou que esse seria um dos maiores escândalos da Olimpíada do Rio.

Mas ao ler o relato dos atletas que diziam ter sido roubados ao voltar de uma festa, a magistrada afirma ter notado na hora que havia algo errado.

A descrição do suposto assaltante, os itens que teriam sido roubados, a atitude desafiadora de Lochte e contradições nas versões dos atletas foram alguns dos elementos que chamaram sua atenção.

Até as calças brancas e limpas de um dos nadadores acenderam o alerta para a juíza, por não se encaixarem no depoimento deles.

Foi então que a juíza de 47 anos e 14 de experiência no ofício decidiu pedir a apreensão dos passaportes dos nadadores e impedir que eles saíssem do Brasil até que o caso fosse resolvido. 

No fim, os atletas acabaram reconhecendo que o "assalto" fora na verdade uma confusão em que se envolveram em um posto de combustíveis no Rio, após vandalizarem instalações do local e serem abordados por seguranças.

"Eles acreditavam que estavam em um país onde podiam fazer o que quisessem", disse a magistrada. "Acreditaram que podiam jogar com as instituições, com a polícia. E aqui não é assim." 

Confira os principais trechos da entrevista com a juíza, que esta à frente do Juizado Especial do Torcedor e Grandes Eventos, que cuidou desse e de outros casos fora do comum da Olimpíada.

BBC - Como a senhora assumiu o caso dos nadadores americanos?

Keyla Blank de Cnop - Estava de plantão. A verdade é que nem sabia quem eram os nadadores. Não acompanho esporte muito. Comecei a ler sobre o caso por curiosidade, e a forma como o nadador Lochte descreveu o assaltante me chamou a atenção.

BBC - Por quê?

De Cnop - Porque me pareceu muito semelhante ao que os roteiristas americanos pensam dos bandidos sul-americanos: um homem alto, forte, de barba, cabelo cortado ao estilo dos oficiais das Forças Armadas. E pensei: 'Isso está muito distante do nosso assaltante de rua, que costuma ter outro biotipo.

Os (supostos) roubos dos objetos também me chamaram bastante a atenção porque, no Rio, se você é assaltado, o celular é a primeira coisa que o bandido quer. E imaginei: "Nadadores americanos não têm nada menos do que um iPhone de última geração. Como o assaltante leva apenas os dólares? Isso não é real, nunca alguém praticaria um assalto apenas pelos dólares e deixaria celular, relógio, roupas caras". 

Comparando os depoimentos de Lochte e do (nadador) James Feigen, percebi que havia outras contradições: um dizia que havia um bandido, outro que eram vários e somente um portava uma arma.

Chamei o promotor, examinamos os autos, e ele disse: "Concordo contigo, tem alguma coisa aqui."

Outra coisa que me chamou a atenção foi o fato de que três deles teriam se deitado no chão, mas que Lochte teria se negado e o bandido teria então colocado a arma em sua cabeça.

No Rio, se um bandido nos manda deitar, a gente deita, porque se a gente não obedece, ele manda bala. Não é brincadeira. Então, falei: "Não é possível, ninguém se recusa a cumprir uma ordem com uma arma na cabeça. Isso não existe."

Quando eu vi as imagens da Vila Olímpica, percebi que um deles estava de calça branca, que não tinha nenhuma sujeira. Quem deita no asfalto com calças brancas vai ter marcas.

BBC - E por que tudo isso não consta na decisão?

De Cnop - É uma decisão que tem de ser tomada rapidamente, requer urgência. Não podíamos parar para pensar muito, porque eles estavam prestes a sair do país.

Não coloquei essa questão da calça não estar suja porque demandava uma perícia. A decisão de reter os passaportes foi cautelar. Se eles saíssem do país, não ia conseguir chegar ao final da investigação.

Mas nunca foi o caso de pedir a prisão deles, apenas a retenção dos passaportes para evitar que eles saíssem do país. Considerando o nível dos atletas, entendi que seria oportuno comunicar à Polícia Federal, que cuida da saída de estrangeiros no aeroporto.

BBC - E até esse momento a senhora não tinha conhecimento das imagens gravadas no posto?

De Cnop - Não, só tinha visto as imagens da Vila Olímpica e pensado: "Ninguém que fosse assaltado chegaria ali com essa tranquilidade".

Tudo bem, o governo investiu muito na Olimpíada, nas áreas próximas aos parques olímpicos, mas a realidade do Rio de Janeiro não é desconhecida, e a violência é grave e séria. Não se brinca com isso. Por isso aquilo me pareceu um grande roteiro de filme de Hollywood.

BBC - Mas para um juiz ordenar a retenção de passaportes de atletas americanos durante a Olimpíada não é uma decisão qualquer. O que passou pela sua cabeça naquele momento?

De Cnop - Não foi a primeira vez em que retivemos um passaporte no juizado. Fizemos isso com todos que praticaram crimes de menor potencial ofensivo.

Em outro caso que não teve tanta atenção da mídia, o pai e treinador de um medalhista australiano da marcha atlética queria entrar no estádio sem ter sua bolsa revistada. O guarda insistiu, e ele o insultou.

Seu passaporte foi detido, e ele teve de pagar R$ 7,5 mil, destinados a uma instituição que cuida de crianças especiais. Casos parecidos aconteceram com russos, japoneses...

BBC - O caso chegou a gerar tensão entre brasileiros e americanos, um grande escândalo internacional. Tinha ideia que tomaria essa dimensão?

De Cnop - Não, mas o que me fez tomar essa atitude é que a lei é igual para todos. Já tinha feito outras apreensões de passaportes.

Não podia atuar de modo diferente neste caso porque se tratavam de medalhistas ou americanos. Mas confesso que não imaginei que o caso ganharia essa dimensão. 

BBC - Foi alvo de algum tipo de pressão?

De Cnop - Não. Foi tudo muito rápido, de madrugada. E não tem isso. Nunca sofri esse tipo de pressão administrativa ou do Executivo e não sofreria neste caso.

BBC - Até Lochte acabou pedindo desculpas. Como avalia a resolução do caso?

De Cnop - Fico feliz com o resultado, porque tudo se resolveu bem. Mas, do jeito que estava o inquérito, tinha 90% de certeza de que havia coisa errada ali.

Não era daquele jeito que eles tinham colocado. Sabia que a verdade era outra. Não sabia qual era, por que se inventou aquilo.

Minha decisão tomou o vulto que tomou porque os colegas que me sucederam no plantão foram tão ou mais rigorosos e conscientes do que era necessário fazer do que eu.

A gente tem a impressão de que a gente reposicionou a Justiça brasileira no mundo. É algo que já vinha ocorrendo, ainda que não dê nem para comparar com a Operação Lava Jato. Mas a Justiça brasileira é firme, sólida, séria, um dos pilares da nação - e foi por tratar todos igualmente que tudo isso aconteceu.

Apreender passaportes de medalhistas é algo muito difícil. Eles são heróis, mas um atleta que vem a um país para disputar uma Olimpíada é um exemplo para o mundo e não pode brincar desse jeito. Não está na casa dele. Tem que estar sujeito às regras.

Acredito que eles acharam que estavam em um país onde podiam fazer tudo, e não é assim. Achavam que podiam brincar com as instituições, com a polícia. Se não é assim nos Estados Unidos, por que seria assim aqui?

Agora, as pessoas vão pensar seriamente antes de vir para cá e fazer algo errado.

BBC - Muitos elogiam a forma como isso foi resolvido. Mas outros dizem que a polícia deveria ser tão eficiente na resolução de outros crimes cotidianos do Rio envolvendo brasileiros, já que a maioria não são solucionados.

De Cnop - Tenho a mesma crítica. Torço por um Brasil melhor, faço minha parte por um Brasil melhor.

E quero ficar como os americanos, que são absolutamente duros, que investigam tudo, que a sociedade ajuda. Mas nossa realidade realmente não é essa. A gente aceita essa crítica, porque ela é verdadeira.