'Aprendi a conhecer um mundo novo', diz Lais Souza dois anos após acidente
Fábio AleixoDo UOL, em São Paulo
Há exatos dois anos, em 27 de janeiro de 2014, Lais Souza viveu o maior drama de sua vida. Um acidente sofrido enquanto esquiava em Park City (EUA) em sua preparação para os Jogos Olímpicos de Inverno de Sochi a deixou entre a vida e a morte. Após vários dias de luta, no hospital da Universidade de Utah, a ex-ginasta conseguiu superar este momento mais delicado, mas se deparou com uma outra situação muito complicada: ficou tetraplégica, sem qualquer movimento nos membros superiores e inferiores. Tudo por causa da lesão sofrida na vértebra C3, da coluna cervical.
Hoje, aos 27 anos de idade, Lais está sem os movimentos de pescoço para baixo e dependendo de uma equipe de apoio para conseguir fazer atividades básicas como comer, escovar os dentes ou tomar banho. Viver em uma cadeira de rodas já não é algo que a assuste tanto. Lidar com as dificuldades de seu cotidiano foi uma lição que teve de aprender, e vem tirando de letra, sem perder o bom humor e o sorriso no rosto.
"Estes dois anos passaram muito rápidos. Eu fiquei praticamente um ano todo no hospital, aceitando a minha situação física, me adaptando. Hoje, eu não posso ter meu momento Laís sozinha. Sempre vou precisar de alguém me ajudando. Mas ao longo de todo este tempo, consegui encontrar coisas que me deixassem feliz, que me surpreendessem. Aprendi a conhecer um mundo novo, o da cadeira de rodas. Tive contato com pessoas maravilhosas. Tem sido um aprendizado muito grande", afirmou a ex-ginasta em entrevista exclusiva ao UOL Esporte.
Lais conversou por telefone com a reportagem no intervalo das várias sessões de fisioterapia e recuperação que faz na clínica Acreditando, no bairro da Saúde, Zona Sul de São Paulo. São atividades diárias, de manhã e tarde, de segunda à sexta. Um trabalho árduo em busca daquele que é o seu maior sonho: voltar a se movimentar, e quem sabe andar. Mesmo diante de todas as dificuldades, ela não perde a fé.
“Meu sonho, não tem como negar, seria ter meus movimentos de volta, me mexer, voltar a andar e ter uma vida normal. Mas com certeza eu sou muito feliz, estou procurando ir atrás do que é possível para mim. O que me faz feliz no momento é aproveitar cada momento. Não adianta pensar muito adiante”, disse a ex-ginasta que tem no cuidador William Campi, um amigo e confidente. Ele é o responsável por acompanhá-lo para cima e para baixo, nas viagens entre Ribeirão Preto, sua cidade-natal, e São Paulo e, inclusive, atender seu telefone.
Veja abaixo trechos do que Lais Souza disse ao UOL Esporte, no qual ela contou também sua expectativa para carregar a tocha olímpica no revezamento antes dos Jogos do Rio.
Sem traumas pelo ocorrido e pelas lembranças do esqui
Graças a Deus, eu não guardo nenhum tipo de trauma com o que aconteceu. Não traumatizei de maneira alguma. Não tenho problema nenhum em ver imagens minhas quando estava treinando ou competindo de esqui, nem de quando estava nas competições de ginástica. Tenho poucos vídeos disso, mas encaro numa boa. Não me faz relembrá-los.
A evolução no estado clínico e a rotina do dia a dia
Eu venho melhorando fisicamente. Logo que sofri o acidente eu tinha muita febre, dores e isso não tenho mais hoje. Mas tenho de me preocupar bastante com a minha saúde. Perco musculatura muito rápido, tenho imunidade muito baixa e posso ficar doente facilmente. Preciso me cuidar bastante para não ter problemas. Quanto à minha alimentação hoje está tranquilo. Posso comer tudo. Meu estômago está mais sensível do que antes do acidente, então procuro comer devagar. Mas como de tudo, de carne à sopa. Gosto muito de estrogonofe.
A minha rotina é de fisioterapia e exercícios de reabilitação todos os dias. Nos fins de semana, quando eu tenho descanso, eu gosto muito de ir ao cinema, teatro, barzinho e ficar com meus amigos. Eu faço de tudo.
Mas é claro que não tenho uma vida normal. Enquanto eu não me movimentar, não vai ser normal. Tenho pessoas que me ajudam para fazer o que preciso, mas tudo é um pouco lento, seja quando tenho de entrar no carro ou tomar banho, por exemplo. Se antes tomava banho de uma hora, eu agora preciso de duas ou três, e sem regalias. É mais esta dificuldade que tenho. Preciso ter muita paciência.
Apesar disso tudo, eu continuo sendo muito vaidosa, sempre gosto de passar um rímel, estar bem vestida. Claro que a maquiagem não fica da mesma forma como se eu estivesse fazendo, mas as pessoas ao meu redor também estão aprendendo as coisas. Venho me adaptando.
Situação financeira para seguir com o tratamento
Hoje eu trabalho para conseguir me manter mensalmente, dando palestras, participando de alguns eventos. Dependo também da ajuda do governo, que chegou numa hora boa. (Laís recebe pensão vitalícia de R$ 4.390,24 apoiada no ano passado pelo Senado, que terá reajuste para R$ 5.189,82 a partir deste mês. Também tem apoio financeiro do Comitê Olímpico do Brasil e da Confederação Brasileira de Desportos na Neve).
Sempre tem gente que me procura querendo fazer doação, mas prefiro trabalhar do que receber estas doações, sabe? Tenho prazer de participar das coisas, não gosto de ficar parada, não me faz bem. Prefiro ser útil, participar das coisas.
Ajuda a pessoas com deficiência física e vítimas de acidentes
Graças a Deus, eu tive muita aprendizagem com tudo que aconteceu e hoje tem pessoas que me procuram para saber como é passar por esta situação, detalhes pequenos que só a mãe, o pai e próprio cadeirante vivem. Fico feliz de passar isso aos outros. Meu sonho é ajudar estas pessoas, fornecer uma estrutura. Quem sabe não monto uma clínica, um instituto no futuro. Depois que uma pessoa sofre acidente deste nível e acaba paraplégica ou tetraplégica, fica sem chão. Queria muito poder ajudá-las.
Preconceito por causa da situação física
Não enfrentei preconceitos após ficar tetraplégica. Sempre tem um infeliz que faz um comentário ou outro em rede social. Mas estas são pessoas mal-informadas, que não têm noção das dificuldades que passamos. Sempre recebi muito mais carinho do que uma manifestação contrária.
Vontade de formar uma família
Estou solteira agora, faz um tempinho. Mas claro que tenho o sonho e desejo de me casar, ter filhos, construir uma família, como qualquer outra pessoa.
Volta ao esporte
Já pensei no esporte paraolímpico. Já me chamaram para conhecer a bocha adaptada, é uma possibilidade que eu tenho. Pretendo ir ao Rio de Janeiro em breve onde tem um instituto com jogadores de bocha paraolímpica. Quero conhecer, e quem sabe jogar. Também gosto de jogar pôquer, que já conhecia antes de sofrer o acidente. Hoje, com tantos campeonatos, considero o pôquer também um esporte.
Participação no revezamento da tocha olímpica e os Jogos do Rio
Fui convidada pela Coca-Cola (patrocinadora olímpica) para carregar a tocha. Isso será em São Paulo, mas não tenho muitos detalhes. É tipo um sonho, sabe? A Olimpíada é muito grande, um evento que eu sou muito fã. Ter a oportunidade de fazer parte e levar a tocha, vejo como uma forma de carinho em relação a mim. Isso me enche de orgulho. Podia ter tantas outras pessoas no meu lugar, mas me escolheram. Sofri um acidente tive uma fase ruim. Por tudo que passei, vejo como um prêmio pela minha história.
Ainda não consigo imaginar muito bem como vai ser carregar a tocha. Vai ter bastante gente, bastante amigos me vendo, vai ser bacana trazer o espírito da Olimpíada. A minha imagem hoje passa isso, de superação. Espero conseguir demonstrar tudo isso nessa pequena caminhada.
Eu também quero ver às competições de ginástica no Rio, e quem sabe a abertura. Mas ainda não tenho ingressos, nem recebi nenhum tipo de convite.