Testes em locais de provas mostram água ainda mais contaminada no Rio
O velejador Erik Heil lançou uma nova ideia para se proteger das águas infestadas de esgoto em que ele e outros atletas vão competir nos Jogos Olímpicos de 2016: sair da marina com um macacão de plástico para proteger o corpo e tirá-lo depois de passar com segurança pelas águas contaminadas mais próximas da costa.
Heil, 26 anos, teve que se tratar em um hospital de Berlim por causa de uma infecção por MRSA, uma bactéria destruidora de tecidos, pouco depois de participar de um evento-teste olímpico no Rio de Janeiro. Mas sua nova estratégia para evitar uma nova infecção não limitará o risco.
Uma nova rodada de testes feita pela The Associated Press mostra que as águas nos locais de competições olímpicas da cidade são tão contaminadas por patógenos longe da costa quanto mais perto da terra, onde o esgoto bruto desemboca de rios fétidos e escoadouros de águas pluviais. Isso significa que não há fator de diluição na baía ou na lagoa em que os eventos acontecerão e, portanto, não há redução do risco para a saúde dos atletas.
“Esses níveis de vírus estão disseminados. Não é só ao longo da costa, mas em toda a extensão da água, o que aumenta a exposição das pessoas que entram em contato com ela”, disse Kristina Mena, especialista em vírus transmitidos pela água e professora associada de saúde pública no Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Texas em Houston. “Estamos falando de um ambiente extremo, em que a poluição é tão alta que a exposição é iminente e a probabilidade de infecção é muito grande.”
Em julho, a AP divulgou que sua primeira rodada de testes demonstrou a presença de vírus patogênicos diretamente associados a esgotos humanos em níveis até 1,7 milhão de vezes acima do que seria considerado altamente alarmante nos Estados Unidos ou na Europa. Especialistas disseram que os atletas estavam competindo no equivalente viral a esgoto bruto e que a exposição a riscos de saúde sérios era quase certa.
Esses resultados acenderam luzes de alerta entre a comunidade atlética mundial, com autoridades esportivas prometendo fazer seus próprios testes virais para garantir a segurança das águas para competição nos Jogos do próximo ano. Essas promessas ganharam maior urgência em agosto, depois que eventos pré-olímpicos de remo e vela no Rio levaram a doenças entre os atletas em uma proporção quase duas vezes maior que o limite aceitável nos Estados Unidos para nadadores em águas de recreação.
Mesmo assim, as autoridades olímpicas e da Organização Mundial da Saúde voltaram atrás em declarações de que realizariam testes virais depois do relatório de julho da AP.
Agora, os testes mais recentes da AP mostram não só que não houve nenhuma melhora na qualidade da água, mas também que a extensão da contaminação da água é maior do que se imaginava. A contagem viral encontrada a mais de um quilômetro das margens na Baía de Guanabara, onde os velejadores competem em alta velocidade e ficam encharcados, é igual à encontrada ao longo da costa, mais perto das fontes de esgotos.
“Os níveis de vírus são tão altos nessas águas brasileiras”, disse Mena, “que, se encontrássemos esses níveis em praias aqui nos Estados Unidos, elas provavelmente seriam interditadas pelas autoridades.”
As autoridades brasileiras, olímpicas e da OMS dizem agora que o Brasil precisa fazer apenas testes de “marcadores” bacterianos de poluição para determinar a qualidade da água. Esse é o padrão de monitoração de corpos de água para as nações de todo o mundo, essencialmente porque isso sempre foi mais fácil e mais barato.
No entanto, em anos recentes, avanços tecnológicos tornaram mais simples e barato monitorar os níveis virais também.
É por isso que há muita pressão dentro das comunidades científicas dos Estados Unidos e Europa para que a legislação passe a exigir também testes virais da água. Segundo os defensores da proposta, estudos repetidos há décadas têm demonstrado pouca ou nenhuma correlação entre os níveis de patógenos bacterianos na água, que se degradam rapidamente em condições de muito sal e sol como as do Brasil tropical, e a presença de vírus, que podem persistir por meses ou, talvez, até anos.
Essa disparidade apareceu nos testes da AP no Rio, em que a água com frequência apresenta níveis seguros de bactérias fecais, mas a mesma amostra revela níveis de vírus equivalentes ao do esgoto bruto. Muitos dos locais testados apresentam também picos de contaminação bacteriana, em especial a lagoa olímpica e a marina de onde os velejadores partem.
As águas do Rio de Janeiro, como as de muitas nações em desenvolvimento, são extremamente contaminadas porque a maior parte do esgoto da cidade não é tratada, muito menos coletada. Enormes quantidades de águas residuais fluem direto para a Baía de Guanabara. A Lagoa Rodrigo de Freitas e a famosa praia de Copacabana também são fortemente contaminadas.
O Rio ganhou o direito de sediar os Jogos Olímpicos com base em um longo documento de candidatura oficial que prometia limpar as águas da cidade pela expansão da infraestrutura de saneamento básico, o que seria um dos maiores legados do evento.
As autoridades brasileiras agora reconhecem que isso não vai acontecer. Os primeiros resultados publicados pela AP foram baseados em amostras colhidas ao longo das margens da lagoa que receberá eventos de remo e canoagem. Outras amostras foram obtidas na marina onde os velejadores entram na água e nas ondas que chegam à praia de Copacabana, local em que acontecerão as competições de maratona aquática e natação do triatlo. A praia de Ipanema, muito frequentada por turistas e onde muitos dos 350 mil visitantes estrangeiros esperados darão um mergulho durante os Jogos, também foi testada.
Desde então, a AP expandiu seus testes para incluir amostras de locais mais afastados da costa nas raias das competições olímpicas de vela na Baía de Guanabara e no meio da lagoa onde se situaram as raias de remo e canoagem em eventos-teste recentes.
Os testes da AP não só encontraram que a lagoa e a baía estão extensamente contaminadas por vírus, como também detectaram um pico de coliformes fecais bacterianos na lagoa – mais de 16 vezes o nível permitido pela lei brasileira.
Mena, a especialista em vírus transmitidos pela água, disse que faz sentido os atletas imaginarem que a baía e a lagoa seriam mais seguras longe da costa, mas os testes não corroboram essa ideia.
“Esperaríamos ver mais flutuações nos níveis de qualquer patógeno na água”, disse ela, “mas isso não acontece ali.”
Como resultado, nenhum dos locais de competições aquáticas é adequado para nadadores ou competidores em embarcações, disse ela. Atletas que ingerirem três colheres de chá de água têm uma chance de 99% de ser infectados por vírus.
Essa avaliação foi corroborada pelo virologista brasileiro Fernando Spilki, coordenador do programa de qualidade ambiental da Universidade Feevale no sul do Brasil, que vem fazendo testes mensais para a AP.
“As amostras das raias das provas de iatismo e de dentro da lagoa provam que os vírus estão presentes mesmo longe da costa, longe das fontes de poluição, e que mantêm cargas virais extremamente altas”, disse ele.
Os atletas tentaram muitos truques e tratamentos para evitar ficar doentes, desde passar água sanitária nos remos e se prevenir com antibióticos – o que não tem nenhum efeito no caso de vírus – a simplesmente tomar um banho de mangueira assim que terminam de competir.
Apesar desses esforços, alguns atletas ainda adoeceram nos eventos-teste realizados em agosto. A Federação Internacional de Remo informou que 6,7% dos 567 remadores ficaram doentes em um Campeonato Júnior realizado no Rio.
A Federação Internacional de Iatismo disse que pouco mais de 7% dos velejadores que competiram em um evento-teste olímpico na Baía de Guanabara no meio de agosto adoeceram – mas a federação não fez um acompanhamento de quantos atletas ficaram doentes nas duas semanas seguintes à competição, que é o período de incubação aproximado para muitos dos patógenos da água.
Mena e outros especialistas dizem que é difícil comparar esses números com o contexto internacional, uma vez que cada localização geográfica tem seus riscos específicos. Mas nos Estados Unidos, por exemplo, o índice máximo de doenças em nadadores aceito pela Environmental Protection Agency é 3,6%, o que muitos especialistas já consideram alto demais.
O velejador alemão Heil foi um dos que adoeceu no evento-teste do Rio. “Nunca tive infecções nas pernas. Nunca!”, ele escreveu no blog da equipe alemã de iatismo no final de agosto enquanto passava por um tratamento doloroso para se livrar das infecções em seus quadris e pernas. “A origem deve ter sido a Marina da Glória. No futuro, vamos tentar viajar para o Rio imediatamente antes do início de qualquer evento, assim, se aparecer alguma doença, isso acontecerá quando já estivermos de volta em casa.”
Neste ano que precede as Olimpíadas, a AP está testando mensalmente amostras de água para três tipos de adenovírus humanos, além de enterovírus, rotavírus e coliformes fecais bacterianos. Os vírus infectam os tratos intestinal e respiratório humanos. Eles causam problemas respiratórios e doenças digestivas, como vômitos e diarreia explosiva, que podem afastar os atletas das competições. Danos cardíacos e cerebrais sérios também são possíveis, embora raros. Uma das análises testa a presença de adenovírus tipos 2 e 5, que são marcadores de contaminação por esgotos. Especialistas em qualidade da água dizem que uma contagem de 1.000 por litro desses vírus nos Estados Unidos ou Europa causaria alarme extremo, levando em muitos casos a interdição de praias.
Amostras de água colhidas a 600 metros da costa e na raia Pão de Açúcar de iatismo apresentaram níveis de vírus 30 mil vezes mais altos do que é considerado alarmante nos Estados Unidos e na Europa.
A raia Escola Naval, em que amostras foram colhidas a 1.300 metros da costa dentro da baía, registrou níveis virais 35.000 vezes mais altos do que esse nível de alarme. Nos testes feitos em setembro, a água deu resultado positivo para enterovírus, uma causa importante de doenças respiratórias, indisposições gastrointestinais e, com menos frequência, inflamações sérias no coração e no cérebro.
Na lagoa olímpica, uma amostra obtida a 200 metros da margem e dentro das raias de remo e canoagem apresentou contagens virais 30 mil vezes acima do nível considerado preocupante nos Estados Unidos e na Europa.
Testes subsequentes de cultura de células mostraram que os vírus da água da lagoa eram “ativos e infecciosos” – mas os das amostras colhidas nas raias de iatismo não. Mena, a especialista em avaliação de risco, disse que vários fatores inibem o crescimento de vírus em laboratório, mas o próprio número de patógenos nas águas do Rio já significa que o risco para a saúde humana é inaceitável.
As autoridades do Estado do Rio de Janeiro prometeram completar a infraestrutura da rede de esgotos perto da Marina da Glória até o final deste ano e estão fazendo progressos. Eles garantem que os locais de competições olímpicas serão seguros.
Mas os níveis elevados de patógenos ligados a esgotos que foram encontrados nas raias de iatismo longe da costa “mostram que esses vírus não vêm só da marina. Há muitos, muitos pontos por onde os esgotos entram na baía”, observou Spilki. “Esses patógenos que estamos testando, especialmente os vírus, são capazes de migrar uma longa distância pelas correntes”.
Esses pontos de poluição são principalmente as dezenas de rios que cruzam a área metropolitana do Rio de Janeiro e despejam centenas de milhões de litros de esgoto bruto na baía todos os dias. Pelas estimativas do próprio governo, apenas metade das águas residuais da cidade que fluem para a baía é tratada.
“A saúde e segurança dos atletas é sempre uma prioridade máxima e não há dúvida de que a água nos locais de competição atende aos padrões relevantes”, disse o Comitê Organizador das Olimpíadas Rio 2016 em uma declaração por e-mail na terça-feira. “A Rio 2016 segue as orientações de especialistas da Organização Mundial da Saúde, cujas diretrizes para a segurança de águas recreacionais recomendam a classificação da água por meio de um programa regular de testes da qualidade microbiana da água.”
Desde que o relatório da AP em julho expôs o sério risco para os atletas, autoridades olímpicas e da Organização Mundial da Saúde mudaram de opinião várias vezes quanto a realizar ou não seus próprios testes de carga viral. A OMS, que atua como consultora do COI, assumiu quatro posições diferentes entre julho e meados de outubro sobre a realização de testes virais. Em um e-mail de 24 de outubro, porém, a OMS disse à AP que sua recomendação foi que as autoridades olímpicas não precisavam realizar testes virais “de rotina” e isso não significava que não estivessem “preocupados com os patógenos virais na água”, e que a qualidade e monitoração da água seriam discutidas no Brasil uma vez mais no fim de novembro.
Mel Stewart, que ganhou duas medalhas de ouro e uma de bronze em natação nos Jogos Olímpicos de Barcelona em 1992, disse que, se sua filha fosse uma competidora em provas de natação em águas abertas no Rio, ele lhe diria para não competir.
“Uma medalha de ouro não vale pôr em risco sua saúde”, disse Stewart. “Neste momento, ainda há muitas dúvidas. Não vejo segurança. Não parece, neste ponto, que se esteja pensando nos atletas em primeiro lugar.”
* Colaborou Stephen Wade