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Racismo fez Aída chorar. E ela foi ícone do atletismo superando obstáculos

Elsa/Getty Images/AFP

Fábio Aleixo

Do UOL, em São Paulo

Aída dos Santos, 78 anos, é um símbolo do atletismo brasileiro. Terceira mulher negra a representar o país nos Jogos Olímpicos, foi também a primeira a disputar uma final olímpica -  quando terminou na quarta colocação do salto em altura em Tóquio-1964. Nesta edição dos Jogos, ela também foi a única representante do sexo feminino em uma delegação que contava com 61 representantes. Competiu também na Cidade do México, em 1968.

Dona de vários títulos estaduais e nacionais, Aída ganhou duas medalhas em Pan-Americanos. No pentatlo, foi bronze em Winnipeg (CAN)-1967 e Cali(COL)-1971. Em 2006, durante a entrega do Prêmio Brasil Olímpico recebeu do COB (Comitê Olímpico do Brasil) o Troféu Adhemar Ferreira da Silva por tudo que fez ao longo de sua carreira. Em 2009, foi agraciada com o Diploma Mundial Mulher e Esporte, uma premiação especial do Comitê Olímpico Internacional (COI).

Mulher, negra e de origem humilde, Aída teve de superar diversos obstáculos ao longo de sua vida. Conseguiu tirar todos de letra.

Sofrer com o racismo desde criança

"Eu sofri racismo, sim. Quando eu estava no primário, ali na segunda e terceira série, eu era a única negra da classe. E tinha uma professora que me chamava de crioula, beiçuda, filha de Grande Otelo. Eu chorava em plena sala de aula. Mas naquela época não acontecia nada. As leis eram muito diferentes. Até dentro de clubes eu sofri. Não me lembro ao certo o ano, foi ali nos meados da década de 50, eu ainda nem havia começado a fazer atletismo. Estava no ginásio de Caio Martins participando de um campeonato colegial de vôlei. Eu era a única negra. Alguém da arquibancada gritou: ‘Sai daí crioula, seu lugar é na cozinha’. Depois do jogo, virei para arquibancada e disse: ‘Meu lugar é na cozinha, no quarto, na sala e numa quadra de esporte'".
 
"Anos mais tarde, quando eu já fazia atletismo e competia pelo Botafogo eu estava lá no clube e um dirigente, que não vou lembrar o nome chegou para mim e disse: ‘Eu gosto muito da senhora, mas no que dependesse de mim, a camisa do Botafogo seria só branca, sem estas listras pretas’. Eu senti naquele momento que era racismo. Eu falei para ele que ele não gostava de mim, gostava mesmo era dos títulos que eu dava para o clube”. 
 
"Eu consegui muita coisa no esporte, mas tenho certeza que seria muito mais reconhecida se não fosse negra".

Felício Safadi/ Folhapress
imagem: Felício Safadi/ Folhapress

 

A batalha para estar na primeira Olimpíada

"A classificação para a Olimpíada no atletismo sempre se deu com a obtenção de índices. E eu consegui fazer o índice para participar dos Jogos de Tóquio, assim como a Márcia Cipriano. Teoricamente nós duas deveríamos ir aos Jogos, mas inventaram que teríamos de passar por uma eliminatória. Seriam seis seletivas para definir a representante do Brasil. Fizemos as cinco e estávamos aguardando a definição da da sexta. Lembro que era dia 6 de setembro - a Olimpíada começaria em outubro - e eu estava em casa de manhã e minha vizinha disse que haviam ligado para ela me dar o recado que às 14h eu precisaria estar no Célio de Barros para fazer a última prova. Eu não tinha telefone na minha casa. Falei para a minha mãe que teria de fazer mais uma prova, mas ela me disse que eu só iria depois de carregar água, lavar roupa e cozinhar. Cheguei lá uma da tarde morta, estava cansada. Não tinha vontade de competir, nem nada. Mas fui lá e consegui superar a Cipriano. Tenho certeza que fizeram isso porque não queriam levar nenhuma das duas para o Japão".
 

Uma mulher na delegação? Era novidade

"Como consegui a classificação bem perto da Olimpíada, não tinha roupa para mim. Todo mundo tinha roupa e calçado para a cerimônia de abertura. Falei que eu tinha uma saia cinza, uma blusa branca e um paletó azul com os cinco anéis olímpicos. Era a roupa que eu tinha usado em 1962 no Íbero-Americano. Era quase igual ao da delegação. E foi assim que entrei no Estádio Olímpico de Tóquio".  
 
"Como eu era a única mulher da delegação, eu fiquei em uma sala separada. Havia divisão entre homens e mulheres. Me deram um quarto imenso, com três camas. Podia dormir cada noite em uma. Tinha pouca relação com os demais atletas do Brasil. Eu gostava muito de andar de bicicleta e todos dias eu saí para passear na Vila, e quando os outros brasileiros me viam, diziam: ‘olha lá a turista’".  
 
"E você não sabe a dificuldade que foi para eu competir. Antes de sair do Brasil a CBD (Confederação Brasileira de Desportos) me deu um só agasalho. Mas não podia usar ele para treinar, se não ia estar todo sujo e rasgado na hora da prova. Então tive de improvisar e treinar com um que haviam me dado no Botafogo. Eu também não tinha sapato de prego para competir. Lembro que um atleta de Cuba me levou na Adidas e me deram uma sapatilha, um tênis e uma bolsa. Mas só foram ver e meu nome não estava na lista de atletas. Tive de devolver todo o material. Fui na Puma e aconteceu a mesma coisa, comecei a chorar. Aí um diretor da Puma se sensibilizou e me deu uma sapatilha, mas era de sprinter, que é bem diferente. Mas era aquilo ou ia competir descalça. No dia da competição, um jeep me pegou na Vila e me deixou no estádio. Não sabia nem para onde ir, eu era a única atleta ali sem técnico. Não vi uma bandeira do Brasil, um brasileiro sequer lá para me apoiar. Ninguém acreditava em mim. Ainda assim, fui lá e fiz a melhor marca da minha carreira (1,74m). Quando voltei para a Vila todo mundo veio me perguntar como tinha ido. Eu contei, mas o que queria mais naquele momento era ir embora para o Brasil".   
 

A vida nos dias atuais

"Eu moro em Niterói com meu marido e meus três filhos. Vivo com o dinheiro da aposentadoria de professora. Sou formada em três faculdades e dei aula. Também não deixo de lado o esporte. Ajudo a organizar e participo de campeonatos masters de vôlei. Treino duas vezes por semanas. Eu adoro o vôlei, está no meu sangue. No ano que vem, quero ver a Olimpíada aqui no Brasil. Além de vôlei e atletismo, quero ver hipismo, natação e ginástica. Não comprei ingresso. Vou ligar para o (Carlos Arthur) Nuzman e para o João Havelange, meu padrinho, para eles me darem ingresso ou uma credencial. Não vou perder esta Olimpíada".  
 

Aída foi tema de um documentário

 

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