Como Fabiana Beltrame se tornou a atleta mais crítica do esporte brasileiro
Guilherme CostaDo UOL, no Rio de Janeiro
Não é apenas por treinar no Rio de Janeiro, sede das Olimpíadas de 2016, e acompanhar de perto a preparação do Brasil para o evento. Também não é só pelo estilo eloquente e assertivo ou pela relevância que ela tem na modalidade. A recente crise entre clubes cariocas e CBR (Confederação Brasileira de Remo) ratificou um importante papel exercido por Fabiana Beltrame, 33, no atual cenário do esporte nacional. Campeã mundial em 2011, a remadora hoje é a atleta com voz mais crítica no país que vai receber os Jogos do próximo ano.
“Acho que é mais pelo fato de o remo estar atravessando essa turbulência toda. Eu me sinto na obrigação de poder ajudar de alguma forma, mesmo que seja por enquanto junto com o que eu faço dentro da água. Já que eu tenho alguma voz, acho importante botar para fora o que está acontecendo para tentar mudar. Desse jeito, o remo está se afundando cada vez mais”, opinou Fabiana Beltrame.
A lista de reclamações de Fabiana é tão extensa quanto multifacetada. A remadora já criticou abertamente, por exemplo, a formação de atletas no Brasil, a gestão da modalidade e o legado que o esporte nacional terá depois dos Jogos Olímpicos de 2016.
“Algumas vezes já me repreenderam por falar algumas coisas. Nem sempre eu tenho apoio. Até as pessoas de fora falam para ter cuidado com o que eu falo para não me prejudicar. Mas até por eu ser um nome forte eu não posso ficar em cima do muro. Tenho de te uma posição. Tenho de defender o que eu acho certo”, disse a remadora.
A crítica sobre a parte técnica
Em julho, logo depois de ter conquistado medalha de prata no single skiff peso leve dos Jogos Pan-Americanos de Toronto-2015, Fabiana reclamou da parte técnica. A categoria, a mesma em que ela foi campeã mundial, não é olímpica. O programa da Rio-2016 tem apenas o double skiff peso leve, e o país não tem uma atleta que esteja pelo menos perto do nível de seu principal destaque.
“Na verdade, isso é um pouco histórico na modalidade no Brasil. Nos Jogos de Londres-2012 ela conseguiu uma parceira muito em cima e com um índice técnico bem abaixo. Existe uma lacuna entre a Fabiana e as outras, e para esse ciclo olímpico nós tentamos fazer algo com a Beatriz Tavares, que tinha sido finalista de Mundial aos 18 anos, algo inédito no país. O barco era competitivo e mostrou isso desde o início, mas algumas questões não permitiram que a Beatriz permanecesse na categoria leve. Tirando ela, não estamos conseguindo um barco competitivo. É um sinal mais do que óbvio de que o desenvolvimento do remo no Brasil tem de ser repensado”, disse Júlio Soares, técnico da remadora.
“Acho que o principal é material humano. A gente tem poucas atletas. O Júlio está começando um trabalho com meninas, mas elas são muito novas ainda. Faltou planejamento lá atrás. Eu remo há mais de 15 anos, e não foi de um dia para outro que eu consegui resultados. Temos de investir na base”, cobrou Fabiana.
A crítica sobre a gestão
Foi um desabafo de Fabiana em redes sociais que escancarou a grave crise do remo brasileiro atual. Em setembro, a remadora confirmou que Botafogo, Flamengo e Vasco boicotariam o Campeonato Brasileiro da modalidade, que a CBR agendou para o fim de outubro (a decisão será no dia 1º de novembro, um domingo, em Brasília). Segundo os times cariocas, o Estadual do Rio de Janeiro já estava previamente programado para essa data.
“Existe um problema no Rio de Janeiro, que é a preparação para receber a Olimpíada. Eles não podem parar a obra para fazer o Campeonato Brasileiro. Os clubes argumentam que não há problema para fazer regatas lá e que eles têm feito, mas são regatas de um dia. Nós precisaríamos de pelo menos uma semana no espaço”, argumentou Edson Altino, presidente da CBR.
“Eu vejo uma briga política muito grande entre as entidades. Quem sai perdendo? O remo do Brasil e os atletas que não vão poder participar porque são subordinados aos clubes. A gente fica numa sinuca de bico: participar da maior competição do Brasil ou do Estadual que já estava marcado antes? Eu fico meio confusa nesse sentido. É uma situação triste para o remo nacional, que já está vivendo um momento ruim. Isso só agrava”, respondeu Fabiana.
O calendário que a FRERJ (Federação de Remo do Estado do Rio de Janeiro) usou como base para programar seu Estadual foi publicado pela CBR no fim de 2013. Alguns atletas chegaram a se inscrever no Brasileiro individualmente, mas os clubes manterão o boicote.
“Não existe condição de essa administração prosseguir no comando da entidade. O legado que a CBR deveria buscar com as Olimpíadas de 2016 foi jogado fora”, avaliou Marcos Almeida, diretor da FRERJ.
A crítica sobre o legado
Aspectos como a dificuldade para encontrar uma parceira e a crise que o remo nacional vive no ano que precede os Jogos Olímpicos fizeram de Fabiana Beltrame uma das vozes mais preocupadas com o legado esportivo que o Brasil (não) terá depois da Rio-2016.
“Acredito que nesse sentido eu não vejo muita mudança, não. No início, quando o Brasil foi escolhido sede, a gente ficou esperançoso que algo fosse mudar. No remo foi o contrário: eu não vi muita mudança. Até de estrutura a gente pensou que ia melhorar, mas os barcos que a gente tem são antigos. A gente não tem um centro de treinamento, não tem onde treinar. É complicado querer que os atletas façam milagre”, criticou Fabiana.
“Eu não consigo pensar em outra modalidade assim. As que eu tenho mais contato eu vejo crescendo, tendo mais resultados. A canoagem nem de perto tem a tradição que o remo tem no Brasil e está aí com vários resultados. Outros esportes estão crescendo – o hóquei sobre grama não existia no Brasil e conseguiu vaga para a Olimpíada, por exemplo. Todos eles têm problemas, mas do jeito que está o remo, a medalha de ouro vai para o remo nesse quesito de oportunidade perdida”, completou.
A remadora foi a única atleta de alto nível no lançamento de um dossiê sobre as violações de direito ao esporte e à cidade, documento organizado pelo Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro. Mais do que isso, Fabiana virou uma espécie de “porta-voz” do levantamento, que é extremamente crítico.
“A Fabiana já escreveu o nome dela na história do remo brasileiro. Atingir o pódio num campeonato mundial já foi um fato inédito, mas ela deu uma declaração que eu vou resgatar para você ver a situação. Quando ela vai a outros países, sempre vê pessoas novas competindo contra ela. Aqui é sempre ela. Não existe renovação. Ela procurou uma parceira para a Olimpíada e não achou. Como você consegue esses talentos se você não tem um trabalho de base?”, questionou Alessandro Zelesco, remador máster, que presidiu a FRERJ entre 2007 e 2010 e é membro da associação SOS Estádio de Remo.
Histórico de críticas molda planos de Fabiana para o futuro
A vertente contestadora não aflorou em Fabiana apenas no fim da carreira. Desde 2004, quando foi aos Jogos Olímpicos pela primeira vez, a remadora sempre foi incisiva em análises críticas sobre o esporte nacional. A lista de focos dela já incluiu atrasos de salários, indefinições em repasses federais para atletas, clube, técnico da seleção e poluição das águas no Rio de Janeiro.
No entanto, a aproximação dos Jogos Olímpicos colocou Fabiana em um contato mais próximo com a gestão do esporte. Não apenas pelas críticas, mas porque a atleta já começou a pensar no futuro – ela já anunciou que vai se aposentar depois da Rio-2016.
“A Fabiana como atleta é uma figura representativa na modalidade, tanto pelos resultados inéditos que ela adquiriu quanto por estar mais madura. Hoje é óbvio pensar nela em outras esferas da modalidade, e não só como atleta. Atuar em outras esferas e contribuir são possibilidades, mas é necessário ter preparação”, disse Júlio Soares, técnico da remadora.
“No momento eu me sinto despreparada, apesar de a vivência prática ser muito grande. Eu teria de juntar a uma questão teórica para fazer pelo menos as escolhas certas e me cercar das pessoas certas. Mas eu ainda não tenho certeza”, concordou Fabiana. “A única coisa que eu sei é que eu vou voltar a morar em Florianópolis e talvez ajudar o remo daqui de alguma forma. Sempre foi um celeiro de grandes atletas, e agora deu uma decaída”, adicionou.