! Daniel Dias quebrou preconceitos da escola ao casamento. E não é coitadinho - 07/09/2015 - UOL Olimpíadas

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Daniel Dias quebrou preconceitos da escola ao casamento. E não é coitadinho

Roberto Oliveira

Do UOL, em São Paulo

Maior medalhista paraolímpico brasileiro com 15 pódios (sendo dez ouros), dono de 14 títulos mundiais, dois troféus Laureus e invicto desde 2013. Esse é Daniel Dias, nadador de 27 anos que acostumou-se a quebrar próteses e preconceitos desde a infância.

Superou o apelido de Saci no colégio com seu primeiro título – num concurso de pintura, onde deu vida a um cavalo alado. Impôs respeito com a bola no pé. E combateu a discriminação mesmo na hora de casar com sua mulher, Raquel Dias, mãe do primogênito Asaph e grávida de sete meses do segundo filho, de quem ficou separado por 3 anos.

E sabe o que mais incomoda Daniel Dias? A pecha de coitado, o olhar atravessado, a falta de oportunidades iguais para quem é diferente. A um ano dos Jogos Paraolímpicos do Rio de Janeiro, em entrevista exclusiva ao UOL Esporte, o maior expoente do paradesporto brasileiro falou da infância em Minas Gerais; do início “tardio” na natação; de suas conquistas pessoais; do cenário para a Rio-16 e até do 7 a 1 na Copa do Mundo. Sempre aos gestos e com sorriso largo...

‘Queriam me tocar pra ver se eu era de verdade’

"Passei por preconceito no colégio, meus colegas aprenderam e eu também aprendi nesse momento, que eu era o diferente né, eles queriam me tocar pra ver se era de verdade. Cheguei chorando em casa, agradeço aos meus pais, que tiveram muita sabedoria. Naquele momento eu aprendi que o preconceito existe, existia naquela época, e vai existir, mas que eu poderia mostrar para os meus colegas que não é porque eu sou desse jeito que não podia realizar o que eles faziam, escrever, pintar…"

Título de pintura para superar os apelidos no colégio

"Nesse período teve um concurso de pintura, eu acredito que ganhei porque estava bonito mesmo, tinha até cavalo voando (risos). Ganhei o concurso como a pintura mais bonita da escola. Aquilo foi algo incrível para mim, um grande começo. Depois dos preconceitos que passei - fui chamado de Saci, de aleijado - mostrei pra mim primeiro que eu tinha que tirar o preconceito de dentro também. E aquele momento quebrou as barreiras, os colegas e eu fomos vivenciando a cada dia, eu ia me superando e eles também, então é algo que eu lembro muito, que eu não tenho dúvida que fez uma grande diferença."

Momentos mais marcante ao lado dos pais

"Foi na escola, quando fui chamado daquelas coisas, eles conversaram comigo, é isso que eu chamo de sabedoria, porque poderiam se revoltar, ir na escola e brigar… Mas minha mãe fez isso uma vez, ela foi me buscar na escola e eu tava no portão chorando. Ela perguntou por que e falei que um menino tinha me chutado. Ela correu atrás do menino, pegou ele, segurou na minha frente, e disse pra eu chutá-lo. Eu não quis. Disse não. E aí apanhei por não ter chutado ele, minha mãe dizia que eu tinha que me defender, mas eu já entendia que não precisava ser daquele jeito. Hoje eu entendo perfeitamente aquele desespero dela de ver o filho chorando, hoje o Asaph está chorando e eu só quero resolver."

Preconceito antes de casar

"Para eu me casar também não foi fácil, foi algo difícil. Meu... Eu hoje como sou pai do Asaph, que tem 1 anos e 5 meses, e entendo algumas coisas. Eu percebia que tinha certo preconceito da família dela, mas que da parte dela era algo muito sincero, e eu ia me casar com ela. É o que eu falo do esporte, fui mostrando para eles que não é porque eu tenho minha deficiência que não ia conseguir cuidar dela, sustentar ela, e eu posso dizer que hoje a família dela é fã do esporte paraolímpico e do que eu venho conquistando."

Asaph: aquele que junta

"A gente namorou 11 meses, mas o preconceito não foi fácil para ela, porque eu já estava acostumado com o peso, mas ela não, nunca tinha passado por isso, foi um momento difícil pros dois. A gente terminou em 2008 devido a muitas coisas e ao preconceito mesmo, ficou três anos separados, e veio se reencontrar de novo depois em 2011. E aí algo que estava guardado floresceu de novo. Em 2013 veio o Asaph, que sem dúvida nenhuma teve muito a ver com tudo isso. Quando a gente estava escolhendo o nome e viu esse significado, aquele que junta, foi algo engraçado, mexeu com os dois instantaneamente: ‘É esse’. Depois a gente nem procurou mais nomes. Foi algo que falou muito com a gente, de tudo que tínhamos vivido, a questão de se separar e de se encontrar de novo. Então não tenho dúvida que o Asaph veio pra juntar a todos, não só a mim com a mãe dele, mas pra juntar nossas famílias e quebrar algumas barreiras que precisavam ser quebradas."

‘Não dava para ficar olhando e não jogar bola’

"Eu quebrava muitas próteses, um número é difícil de falar, dezenas. A minha mãe ficava muito brava porque a gente morava em Camanducaia (MG) e tinha que viajar para São Paulo para arrumar as próteses. Eu ia pra escola e a minha mãe pedia: ‘Não joga bola hoje’. Mas eu não aguentava, sentava, ficava olhando, e dizia: ‘Não vai dar’. E era justo nesses dias que a prótese quebrava, tinha dia que eu voltava de SP, ia jogar e quebrava a perna de novo, literalmente. O parafuso soltava e ficava uma parte [da prótese] na perna e a outra solta no chão. De tanto que a gente foi lá meu pai pediu uns 10, 15 parafusos pra conseguir remendar e não precisar ficar viajando, então diminui um pouquinho. Até brinco que quando comecei eu era o último a ser escolhido no futebol, nunca fui o primeiro primeiro porque também não era um craque, mas a partir do momento que me conheceram eu não era mais o último a ser escolhido. Pode parecer algo pequeno, simbólico, mas é algo grandioso se a gente pensar no que eu cresci com isso, e quem já jogou bola sabe que ser o último ser escolhido não e fácil  (risos)."

Conquista mais simbólica no esporte

"Foi a minha primeira prótese, com três anos que eu comecei a usar, tudo começou foi ali, meus primeiros passos. Às vezes as pessoas falam que eu comecei tarde no esporte, depende, três anos é tarde para começar a andar, fui andar de bicicleta com 12 anos. Tudo tem seu tempo, na minha vida aprendi muito com isso. Então não foi fácil dar os primeiros passos, todas [as conquistas] são importantes, mas quando eu olho para minha primeira prótese penso que foi ali que comecei a gosta de esporte. Hoje faço natação, mas se eu pudesse fazer todos os esportes eu fazia."

Início na natação

"Aprendi a nadar no fim de 2004, com 16 anos. Foram dois meses e em oito aulas eu aprendi os quatros estilos. Até então não sabia nadar, até ter esse interesse e descobrir o esporte adaptado."

Daniel Dias

  • Buda Mendes/CPB

    Eu acredito muito na Rio-16 pra mudar essa visão que só existe futebol no Brasil. Não. Vamos mostrar pra nós brasileiros e pro mundo que aqui é de todos os esportes, de todo mundo, seja branco ou negro, deficiente ou não, esse é o Brasil de todos

    Daniel Dias

O papel da Rio-16 para o esporte brasileiro

"Eu acredito muito na Rio-16 pra mudar essa visão que só existe futebol no Brasil. Não. Vamos mostrar pra nós brasileiros e pro mundo que aqui é de todos os esportes, de todo mundo, seja branco ou negro, deficiente ou não, esse é o Brasil de todos, é uma grande ferramenta pra gente mostrar esse valor. A gente tem grandes atletas, mesmo na natação convencional, judô nem se fale, o próprio vôlei, então a gente vai surpreender. Fora as medalhas que a gente não espera mas vai conquistar pelo calor do momento, de competir em casa, isso vai dar um ânimo maior."

O preço do 7 a 1

"As pessoas estão começando a acompanhar mais outros esportes, devido também ao resultado que teve na Copa do Mundo. Não precisava ser 7 a 1 né cara, a gente podia ter perdido, mas 7 a 1 foi algo que doeu. Depois da Copa mudou um pouco o foco, agora só se fala em 2016, o que pra nós é muito bom."

O troco do 7 a 1

"O pessoal sempre fala, pergunta o que aconteceu, aí tem umas piadas, ainda mais dos alemães. Todo ano a gente vai pra uma competição em Berlim e percebe que eles tão rindo da gente. Não entendemos quase nada né, porque é em alemão, mas sabemos que tão falando é do 7 a 1. Mas damos o troco aqui."

A expectativa da Paraolimpíada

"Eu imagino o complexo aquático lotado. Se tudo der certo e a gente conquistar uma medalha de ouro, subir no lugar mais alto do pódio e cantar o hino mesmo depois que a música parar, como foi na Copa. A gente vê pela TV e emocionava, mas viver aquilo, as pessoas cantando com você, eu já pude competir duas paraolimpíadas longe de casa e já foi bacana, mas imagina a torcida competir junto com você. É de fazer os adversários tremerem a perna, quem tem, é claro, porque no esporte paraolímpico tem uns que não têm, então não há como tremer a perna (risos), mas de dar um susto nos caras."

Objetivos da Paraolimpíada

"Hoje a natação paraolímpica brasileira está muito bem e vive algo que algum tempo atrás não estava acontecendo: renovação. Não vou durar pra sempre, por mais que eu queira continuar por muito tempo, ainda quero conhecer Tóquio [na Paraolimpíada de 2020], aí eu penso em parar. Mas a gente sabe que a idade chega pra todo mundo e pensamos em renovação. Tô muito esperançoso com esse grupo que está vindo, que esteve em Glasgow, no Mundial, e em Toronto, no Parapan. A grande maioria sei que estará no Rio. Acho que essa molecada vai dar trabalho para os atletas dos outros países e ajudar o Brasil a garantir o 5º lugar no quadro geral de medalhas, que é o nosso grande objetivo."

O esporte paraolímpico precisa fazer trabalho de base

"Precisa melhorar realmente é na base, acreditar em quem está começando, as empresas acreditarem no esporte paraolímpico, isso está mudando e espero que não pare depois de 2016."

A complexa classificação do paradesporto

"Até pra gente que faz parte do esporte é complexo, mas para poder competir precisamos passar por uma classificação. Deficiência físico motora, que é o meu caso, quanto maior o grau da deficiência, menor o número da classe. Visual é a mesma coisa. S10 seria deficiência mínima, S1 seria um tetraplégico que tem leve movimento de braço, mexe um pouco o pescoço. Eu sou S5 no nado livre (200m livre, 100m livre, 50m livre, 50m borboleta, e 50m costas), B4 no nado peito e M5 no medley. Os profissionais que fazem isso tentam da melhor maneira possível equilibrar, porque as deficiências não são iguais, meus adversários não têm a mesma deficiência que a minha, eu tenho uma formação congênita, tem aqueles que têm todos os membros e não mexem as pernas, mas a funcionalidade dentro da piscina é bem próxima, o IPC (Comitê Paralímpico Internacional) faz o melhor possível para ser bem justo."

‘Minhas conquistas não vêm porque estou nas categorias erradas’

"Claro que seria um grande desafio nadar numa categoria acima, mas para mim não há essa possibilidade. Com muito tempo de natação, alguns atletas desenvolvem alguns movimentos que não faziam, aí sim pede-se a classificação novamente pra ver se ele evoluiu na deficiência. O próprio IPC avalia o atleta numa banca, que normalmente é composta de três pessoas. No meu caso é mais simples, porque minha mão não vai nascer, essa braço [direito] não vai aumentar. No meu caso eles medem meus membros e existe uma tabela com um número padrão, e claro que eles me olham nadando. Eu treino e me dedico muito, minhas conquistas não vêm à toa, não é porque eu tô na categoria errada, é porque eu treino muito e me decido pra representar o meu país."

O assédio em Bragança Paulista

"Não me vejo como celebridade, sou uma pessoa conhecida, nem gosto de falar assim, mas acredito que sou um exemplo pra muitas crianças, e não só com deficiência. Já aconteceu de uma pessoa chamar o filho pequenininho, sem nenhum deficiência, e falar: ‘Esse é um grande exemplo pra você seguir’. Isso não tem preço, é algo incrível, de você ver a admiração da pessoa. Eu confesso que na sociedade que vivemos achei que ia demorar muito mais pra isso acontecer, o esporte proporciona isso. A criança chega assustada, mas quando vê os pais emocionados, ela passa a ter uma admiração e ali o preconceito está quebrado. Às vezes a pessoa vem e fala: ‘É você, eu te conheço, não e você?’. Eu falo que sim né (risos). Então é muito engraçado, você sabe que a pessoa te conhece, mas não lembra o nome, aí ela vai lembrando: ‘Você é aquele nadador...’. Eu fico realmente contente com isso, porque o nome às vezes é uma besteira, mas ela sabe quem eu sou."

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