Ninguém sentiu tanta dor no esporte quanto o medalhista do judô
Bruno DoroDo UOL, em São Paulo
A cidade era Pequim. O ano, 2008. Leandro Guilheiro acabara de conquistar seu segundo pódio olímpico. Com a medalha de bronze no peito, ele mal conseguia erguer a cabeça para falar com os jornalistas que aguardavam para entrevistá-lo. Minutos antes, ele tinha vencido Ali Malomat por ippon. No rosto, a expressão não negava a dor que o judoca sentia. Naquele momento, ele tinha uma fratura na mão e uma lesão no ligamento do quadril. A hérnia de disco que apareceu um ano antes, durante os Jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro e que o obrigaria a passar pela mesa cirúrgica meses depois, parecia desimportante nesse quadro.
Provavelmente, nenhum atleta brasileiro sentiu tanta dor para praticar seu esporte e venceu tanto quanto ele. O condicional é necessário porque, segundo especialistas, não existe uma maneira confiável de medir e comparar o que a dor significa para pessoas diferentes. Guilheiro, porém, é diferente nesse aspecto: já operou ombro, joelho, quadril, pulso... e segue na ativa. A última o deixou fora dos treinamentos por dois anos. E ele nem mesmo pensa em parar.
“Estou lutando para disputar as Olimpíadas de 2016. Não trabalho com a hipótese de ficar fora dos Jogos. E não penso em um momento de parar de lutar. Isso simplesmente não passa pela minha cabeça”, explica Guilheiro, em entrevista ao UOL Esporte.
O que surpreende nessa frase não é a confiança do lutador. Quem consegue, mentalmente, superar a limitação de músculos e articulações como ele tem confiança de sobra. A questão é a recusa em pensar que o corpo pode, simplesmente, não aguentar mais um ciclo olímpico de treinos, de esforços e de muitas dores.
Em 2012, Leandro foi o sétimo colocado nos Jogos Olímpicos de Londres. Quando voltou a treinar, já pensando no Rio-2016, sofreu uma lesão séria nos ligamentos do joelho direito - a lesão era complexa, envolvia os ligamentos colaterais e cruzados. Teve de operar duas vezes, a segunda por problemas de absorção do ligamento.
“Eu já tinha feito outras operações. Em todas, depois de três ou quatro meses eu estava de volta. Dessa vez, foram dois anos sem pegar no quimono. Foi muito pior. Quando achei que estava recuperado, a lesão voltou. Mas esse período foi positivo. Voltei a estudar. Descansei muito. Após Londres, o desgaste mental era enorme”.
Não foi a primeira vez que Leandro iniciou um ciclo olímpico com operações. Após o bronze em Atenas, em 2004, ele já tinha operado pulso e quadril. Após subir ao pódio em Pequim, em 2008, operou a hérnia de disco nas costas. Em ambos os casos, competiu nos Jogos Olímpicos machucado. No ciclo olímpico de Londres, até 2012, diminuiu muito o ritmo de treinos e conseguiu competir relativamente saudável: “Eu fazia apenas treinos técnicos, nada pesado, para não me machucar. Não era o ideal”, admitiu, em entrevista para Folha de S.Paulo.
Todos esses problemas são causados pela capacidade elevada de sentir dor do judoca. “Meu limiar é muito alto. E isso sempre me causou muito problema. Eu continuo treinando apesar da dor que sentia. Só que uma lesão que não é tão grande acaba virando algo complicado. Piora e acaba exigindo cirurgia”, analisa Guilheiro na série de documentários A Vaga, (criada e dirigida por Rodrigo Meirelles, com produção de Andrea Barata Ribeiro e Isabel Berlinck), que está sendo exibida pela HBO. “Por um lado, superar a dor e continuar competindo me levou a coisas muito grandes. Me levou a conquistar uma medalha olímpica mesmo sentindo muita dor nos Jogos Olímpicos de Pequim. Já lutei com hérnia de disco cirúrgica, com uma mão quebrada...”.
Para Wagner Castropil, judoca olímpico e médico que o operou, o caso de Guilheiro é típico. "Dor é um sinal de que o corpo está sendo exigido além da sua capacidade. Atletas precisam atingir esse limite. Mas é preciso achar o equilíbrio. Às vezes, o atleta tem uma tolerância à dor tão alta que ignora os sinais, passa do ponto de alerta e uma pré-lesão se transforma em um problema. Eu acompanho o Leandro desde os 17 anos. Ele teve lesão atrás de lesão, a maioria por sobrecarga. Se existisse uma maneira de medir a dor, ele certamente seria um extremo".
Tolerância à dor, porém, é comum aos atletas de alto nível. “Atleta sente dor. É normal. A diferença é como ele lida com isso. Administrar a dor, saber a hora de insistir e de parar, de conhecer o corpo”, fala Marcos Gotto, técnico de Arthur Zanetti, campeão olímpico da ginástica artística. "Dor é subjetivo. O mesmo estímulo é sentido de maneira diferente por duas pessoas. Mas é sabido que atletas, de modo geral, tem um limiar mais alto, necessário para aguentar o ritmo de treinos. Um estudo finlandês com pessoas de 70 a 80 anos mostrou que ex-atletas têm tolerância a dor maior e sentem um desconforto menor do que pessoas sedentárias, mesmo apresentando quadros mais graves de artrose e processos degenerativos", completa Castropil.
Com ou sem dor, Leandro Guilheiro não vai parar de competir tão cedo. E o ritmo de torneios deve ser alto. Para lutar no Rio-2016, ele terá de superar não apenas a concorrência pesada (Victor Penalber já foi o número 1 do mundo e é, atualmente, o melhor brasileiro no ranking mundial), mas também as novas regras do judô. “Nesse período de dois anos, as regras mudaram muito. Foram duas grandes mudanças enquanto eu estava fora. O comportamento dos judocas é diferente e eu preciso me adaptar a isso. Hoje, a luta é muito mais rápida, a arbitragem interfere mais e você precisa ter uma postura ofensiva sempre”, disse.
Até agora, Guilheiro vem tendo sucesso no retorno. Ele subiu ao pódio nos dois campeonatos que disputou desde então: foi prata no Aberto de Varsóvia, na Polônia, e bronze no Aberto de Montevidéu, no Uruguai.