Lamaçal olímpico

Por que um país do tamanho da Índia ganha tão pouca medalha em Olimpíadas

Daniel Brito e Ugo Araujo Em Nova Déli, Índia

Esta não é mais uma reportagem sobre grandes potências dos Jogos Olímpicos. Você não lerá aqui como se formam campeões ou como funcionam grandes centros de treinamentos referências mundiais. O UOL Esporte veio até Déli, a capital, para mostrar um país que não dá a mínima para Olimpíada. 

A Índia tem 1,2 bilhão de habitantes. Mesmo assim, em 2012, foram apenas seis medalhas ao total - nenhuma de ouro. Os indianos foram lanterna nos Jogos de 2004, 2008 e 2012 de um ranking que leva em conta o número de medalhas por habitantes. Na última edição, por exemplo, tiveram um pódio para cada grupo de 206 milhões de habitantes. Os Estados Unidos conseguiram um para cada três milhões. O Brasil, uma medalha para um grupo de 11 milhões de brasileiros.

Esta é uma reportagem especial sobre um país que tira da terra, literalmente, seus atletas olímpicos. E tenta alçá-los à condição de heróis olímpicos com seus métodos rudimentares, como acontece com os atletas da luta na lama, uma tradição milenar, que hoje serve como base para formar talentos da luta olímpica. Uma nação tão grande, que consegue ser rica e pobre, tem suas próprias regras, seus próprios esportes e até sua própria Olimpíada (você já ouviu falar na Olimpíada Rural?). Tem uma devoção pelo críquete que atrapalha o desenvolvimento de outras modalidades. E que superou até mesmo em popularidade um esporte no qual os indianos já foram imbatíveis em Jogos Olímpicos: o hóquei na grama.

Ugo Araujo/UOL Ugo Araujo/UOL

A luta poderia ser uma grande fonte de medalha...

A força bruta, os movimentos ásperos, o choque violento entre os músculos dos lutadores, as quedas truculentas no barro são todos parte de uma tradição secular indiana. Alguns chamam de pehlwani, ou kushti. É um derivado de outras formas de luta, que no Sul da Ásia tem um histórico de mais de 5 mil anos de tradição.
 
Durante o império Mughal, que reinou em dois períodos no sub-continente indiano a partir do século 16, era uma forma de diversão e competição nas isoladas vilas rurais. Um teste de força e virilidade entre os homens. 
 
Por isso eles lutam seminus, apenas com uma tanga de pano, e no barro. Com o suor derramado na arena, torna-se lama, que gruda no corpo, que dá contornos dramáticos à luta. 
 
É um costume que se mantém vivo até hoje na Índia. E que agora serve como grande celeiro de formação de atletas na luta olímpica.
 
 
 
Ugo Araujo/UOL Ugo Araujo/UOL

A insegurança e a falta de apoio afastam as mulheres

O problema da violência urbana, com estupros coletivos noticiados com alarde nos últimos anos, é a principal preocupação das esportistas e com quem trabalha nas modalidades femininas. Durante a visita do UOL, na periferia de Déli, em um centro esportivo de pequeno porte, 20 atletas treinavam com um futuro incerto. E até com medo. 

“Temos muito problema com estupro aqui. E também a maioria das garotas não tem permissão para praticar esportes. Tenho amigos e algumas pessoas que tiveram problema com a família. Elas dizem: 'eu queria estar lá com você todo tempo, treinando, competindo'. Elas não são muito abertas com os pais e não é fácil contar com o apoio deles", contou a corredora Kavita Goswani.

O técnico de Kavita, Kartay Singh, corrobora com a visão: "É mais difícil para garotas porque a mentalidade dos pais não permite que as garotas fique tanto tempo fora para treinar. Porque temos um problema de segurança, em geral. Hoje estamos desenvolvendo com a educação, há uma mudança, mas ainda há déficit com as meninas em comparação com meninos ”

O críquete é o esporte (não olímpico) que move paixões

Ugo Araujo/UOL Ugo Araujo/UOL

Como o críquete atrapalha os outros esportes

Considerando que o críquete é uma religião na Índia, tamanho o entusiasmo e paixão com que os indianos encaram a modalidade, podemos chamar de “ateus” aqueles que não simpatizam com o jogo do taco. Não são muitos, é verdade, mas eles existem no universo de mais de um bilhão de habitantes.

Antes que sejam tachados de hereges, muitos dos desportistas anticríquete são adeptos de outras modalidades tipicamente indianas. Existe quem se arrisque até mais. O tiro com arco é o esporte que vem adquirindo popularidade. No Mundial do ano passado, os indianos conquistaram quatro medalhas de prata. 

Todo mundo joga críquete, eu não quero ser todo mundo. Decidi fazer tiro com arco” 

O estudante Sahil Lohehab, que toma aulas de tiro com arco na periferia de Déli, no bairro chamado Chhatrasal, contou à reportagem seu sentimento. 

Até o hóquei - que ainda cativa seus praticantes quase que pelos mesmos motivos do esporte mais popular da Índia - sofre. Mantê-lo na grade curricular das escolas é um desafio, já que no espaço onde se joga o hóquei pode muito bem ser montado um campinho de críquete: um terreno plano de grama ou até mesmo terra batida. E olha que o hóquei já foi muito relevante para os indianos nos Jogos Olímpicos. 

 

Ugo Araujo/UOL Ugo Araujo/UOL

A grama secou e as medalhas também

A seca de medalhas aconteceu depois que a grama mudou e a Índia perdeu a única fonte que tinha para o sucesso nas Olimpíadas: o hóquei na grama. Os indianos já foram donos de um dos mais temidos esquadrões olímpicos. Digno de Dream Team. Dos Jogos de Amsterdã-28 até Munique-72, conquistaram sete ouros olímpicos, cinco dos quais consecutivos. A ruína indiana veio em Montreal-1976. Por força política dos europeus, o hóquei deixou de ser jogado em gramado natural e passou a adotar o piso sintético como campo oficial. Não havia pisos sintéticos na Índia,

"Uma das razões de o hóquei indiano cair de nível foi que o custo de fazer um campo sintético é proibitivo", explicou o historiador indiano K. Arumugam. Em Montreal-76, estreia da grama sintética, a Índia amargou a, até então, inédita sétima colocação. A despedida do pódio veio em Moscou-1980, quando países alinhados aos EUA boicotaram os Jogos. Os indianos ficaram com o bronze, e nunca mais conseguiram outra medalha olímpica. Em Londres-2012, foi a última colocada. 

Sem gramados sintéticos e na vida real, os esportes que concorrem com o críquete tem desafios bem particulares. 

E a Índia ainda é autossuficiente

Ugo Araujo/UOL Ugo Araujo/UOL

A prática enraizada

A ioga é disciplina obrigatória no curriculo escolar da Índia desde a década de 1970. Indira Gandhi (nada a ver com Mahatma Gandhi) era chefe do governo e praticante de ioga e instituiu a lei que manteve viva a prática milenar. Para o país, ioga é um estilo de vida, no qual fazem parte uma alimentação balanceada à base de vegetais, frutas e verduras, além de meditação. Em cidades como Rishikesh, 230 km a nordeste da capital Déli, é possível encontrar grupos de ioga com mais de 5 mil pessoas em grandes descampados. A localidade é considerada a capital mundial da ioga.

Ugo Araujo/UOL Ugo Araujo/UOL

O pega-pega profissional

Um esporte chamado kabaddi é muito popular em Bangladesh, um populoso país encravado na porção leste da Índia. Mas é uma prática quase milenar inventada e largamente difundida no território indiano. Mal comparando, é um jogo de pega-pega violento, às vezes, brutal. Levado muito a sério e com diversas regras em uma área com demarcações que lembram bastante uma quadra de tênis. "Se você for nas vilas rurais, porque este país é repleto de vilas rurais, você vai encontrar mais gente praticando o kabaddi do que o críquete", garantiu Shiv Mann, que dá aulas desta modalidade em Déli.

O interior do país adora as Olimpíadas Rurais

Os indianos ainda têm outros meios de se exercitar. Com esporte bem anormais. O nome oficial é “Kila Raipur Sports Festival”. Não é críquete, nem yoga e acontece todo mês de fevereiro. Mas carrega a alcunha de Olimpíadas Rurais. Trata-se de um festival de absurdos realizado anualmente desde 1933, contempla os hábitos da população rural da Índia - estima-se que cerca de 80% dos habitantes do país vivam em áreas rurais.

Só indianos e, às vezes, alguns países vizinhos participam. Veja alguns dessas "modalidades" nas fotos abaixo. 

As modalidades que podem salvar a Índia na Rio-2016

  • Gagan Narang (tiro esportivo)

    33 anos. Foi oito vezes campeão nos Jogos da Comunidade Britânica e bronze em Londres-2012 (carabina de ar 10m)

    Imagem: Lars Baron/Getty Images
  • Saina Nehwal (badminton)

    26 anos. Campeã mundial júnior, bronze em Londres-2012 e primeira indiana a subir ao pódio olímpico na modalidade

    Imagem: Stanley Chou/Getty Images
  • Deepika Kumari (tiro com arco)

    22 anos. Tiro com arco Duas vezes campeã dos Jogos da Comunidade Britânica e prata nos mundiais 2011 e 2015

    Imagem: Dean Alberga/World Archery
  • Yogeshwar Dutt (luta olímpica)

    33 anos. Foi campeão asiático, dos Jogos da Comunidade Britânica e bronze nos Jogos de Londres-2012

    Imagem: Paul Gilham/Getty Images

Curtiu? Compartilhe.

Topo