Por que Andy Murray é escocês quando perde e britânico quando ganha
*Duncan CastlesColaboração para o UOL
Que você possivelmente nunca tenha visto a seleção da Escócia na Copa do Mundo, é porque já não produzimos jogadores do calibre de David Narey, autor do gol mais bonito da Copa da Espanha em 1982, que nos colocou na frente no placar contra sua grande seleção (o resto do que aconteceu naquele Grupo 6, os escoceses preferem esquecer...).
Que você definitivamente nunca tenha visto uma equipe da Escócia nos Jogos Olímpicos, é por causa de uma peculiaridade da política. Não é por falta de atletas de classe mundial. Eric Liddell, o velocista imortalizado no filme Carruagens de Fogo; Allan Wells, o último não-afro-caribenho campeão dos 100 metros rasos; e Andy Murray, medalhista de ouro no tênis quatro anos atrás e finalista novamente em 2016. Eles são apenas alguns dos nomes escoceses na história dos Jogos.
No entanto, todos eles ganharam suas medalhas representando a Grã-Bretanha. Quando Murray carregou a "Union Flag" (a bandeira britânica) na Cerimônia de Abertura do Rio, vimos um momento que representa as tensões políticas e esportivas entre a Escócia e a sua identidade oficial internacional como uma pequena parte do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte.
No tênis, um esporte predominantemente individual, Murray é forçado a representar a Grã-Bretanha. Ele é celebrado por alguns como o tenista "britânico" que acabou a longa e dolorosa espera de 76 anos da nação para ter um campeão de Wimbledon. Em 2015, Murray e seu irmão Jamie ganharam os três pontos finais que trouxeram a Copa Davis ao tênis "britânico" pela primeira vez em 79 anos.
Murray, porém, é um homem cuja nacionalidade "muda" conforme seus resultados nas quadras. A piada na Escócia é que a mídia do Reino Unido chama Murray de inglês quando ele ganha e escocês quando perde. No início deste ano, o instituto YouGov publicou resultados de cinco anos de pesquisas após questionar 1820 pessoas do Reino Unido, A pergunta é se eles achavam que Murray era "um esportista escocês ou um esportista britânico". Notavelmente, Murray foi considerado escocês (por 59% dos entrevistados) logo após perder o Aberto da Austrália de 2011. Depois que ele ganhou seu primeiro Wimbledon, no entanto, mais entrevistados disseram acreditar que ele era britânico, não escocês.
Murray se considera escocês. Em 2010, ele foi atacado pela mídia inglesa porque, questionado sobre quem gostaria que ganhasse a Copa do Mundo de futebol daquele ano, respondeu "qualquer um, menos a Inglaterra". Essa resposta jocosa é uma reflexão apropriada sobre a posição da maioria dos seus compatriotas. Para os escoceses, não há nada mais gratificante do que derrotar a Inglaterra no esporte. A segunda coisa mais gratificante é ver alguém derrotar uma equipe inglesa. Em qualquer que seja o esporte.
Murray sofreu mais pressão ainda em 2014, quando ele declarou publicamente seu apoio à independência escocesa antes de um plebiscito sobre o assunto. No final, a população da Escócia decidiu por pouco continuar a ser parte do Reino Unido.
O resultado foi consequência de uma campanha vergonhosa do establishment britânico com base no medo, ameaças, mentiras e falsas promessas. Uma das mentiras: que a Escócia teria de sair da União Europeia caso se transformasse em nação independente. Dois meses atrás, vejam que ironia, o eleitorado do Reino Unido votou pelo Brexit, a saída da União Europeia. Na Inglaterra, 53,4% das pessoas votaram para deixar a Europa. Na Escócia, o resultado foi diferente, 62% votaram pela permanência.
O Partido Nacionalista Escocês já faz planos para um segundo plebiscito sobre a independência. Pesquisas indicam que a maioria da população da Escócia está pronta para votar "sim" e que deveria receber uma segunda chance para recuperar a independência que o país perdeu em 1707, quando seu Parlamento (não eleito) votou sob fortíssima pressão econômica da Inglaterra por uma união com o vizinho do sul - que era então, e ainda é, chamado de "The Auld Enemy" (o velho inimigo).
Por enquanto, os escoceses são forçados a assistir aos Jogos Olímpicos com os atletas do país atuando junto com os de um país que é o nosso maior rival esportivo. Nem preciso dizer que esta situação reduz as oportunidades para escoceses participarem dos Jogos e ainda cria outros absurdos.
Gostaria que vocês, brasileiros, imaginassem o que acontece com os escoceses que ganham um ouro olímpico.
Primeiro, eles estarão no pódio representando um país que possivelmente eles considerem ser o país que impede sua terra de controlar o próprio destino. Depois, em vez de subir a simples bandeira azul e branca da Escócia, as autoridades olímpicas vão levantar uma bandeira em que as cores da bandeira da Inglaterra estão simbolicamente sobrepostas às da Escócia. Uma bandeira está em cima da outra por motivos óbvios. Finalmente, o estádio terá que ouvir o canto fúnebre que é o hino nacional do Reino Unido; uma peça de música que só um surdo poderia descrever como bela.
Falhas estéticas à parte, God Save the Queen dificilmente será a canção favorita do nosso campeão olímpico escocês. O hino contém letras do século 18 suplicando ao Todo-Poderoso para "dispersar seus inimigos e fazê-los cair". E apenas no caso de haver qualquer dúvida sobre quem está incluído na lista de inimigos da rainha, há uma linha sobre como manter a Escócia em seu lugar. “Como uma forte correnteza, rebeldes escoceses esmagar". Este verso faz parte de uma versão mais longa e antiga do hino, que ainda constava em muitos livros quando eu - e muitos atletas olímpicos - éramos crianças. Hoje, não é mais educado cantá-lo. Mas o verso ainda tem seus fãs no sul.
Então, perdoe-nos se nós, escoceses, somos tão ambivalentes sobre os Jogos Olímpicos. Nós gostamos do esporte e do evento. Queremos que os nossos homens e mulheres ganhem medalhas. Mas seria muito, muito, muito melhor se eles estivessem aí no Rio representando a Escócia, não o Time da Grã-Bretanha.
Tóquio-2020 seria um ótimo momento para começar. Eles gostam do nosso whisky por lá também...
* Duncan Castles, 45, é um jornalista escocês que escreve sobre futebol europeu para The Sunday Times, The Daily Record, One World Sports, Sports Illustrated, entre outras publicações internacionais
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL