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Descuido com assédio faz com que transporte público não seja um legado

Xinhua/Imago/ZUMAPRESS
BRT é usado pelos políticos como propaganda do legado olímpico imagem: Xinhua/Imago/ZUMAPRESS

Colaboração para o UOL

Na última terça-feira, surgiu em uma praia do Rio de Janeiro uma estátua de gelo com a palavra “Legado”. A provocação é pertinente também para se pensar o BRT, corredor exclusivo de ônibus, que foi largamente divulgado como uma das maiores heranças dos Jogos Olímpicos para a cidade. Mas será que esse legado foi pensado para as mulheres?

Nas Olimpíadas, o trajeto Fundão X Rio 2 em direção ao Parque Olímpico trouxe muitas histórias que indicam que não. “O pior é não ter muito pra onde correr, ou você é sarrada (encoxada) ou não chega em casa”, conta Jéssica Oliveira, que trabalha no Projac.

“O BRT tem menos mulheres na hora que volto e, por isso, nós tendemos a ficar juntas. Tem muito homem no BRT às 18 horas e geralmente olham todas as mulheres que entram no ônibus como pedaços de carne, andam sempre em bonde”, confessa Vitória Lourenço, que mora em Jacarepaguá. “Me sinto mal, constrangida. Às vezes eu nem quero ser mulher mais.”

As entrevistadas são unânimes em dizer que os seguranças das estações não têm ajudado. “Eles (os guardas) não interferem em nada, só estão ali para organizar a fila, afastar quem não deveria estar ali. Dá pra ver que eles sabem que não é o papel deles (impedir o assédio)”, conta Kamilla Santos, que chega a pegar seis BRTs por dia.

A orientação do BRT é que todas as mulheres vítimas de assédio em articulados comuniquem o crime ao motorista, que deve acionar imediatamente, por meio de computador de bordo, o Centro de Controle Operacional (CCO), que contata em tempo real a equipe de Inteligência do Consórcio. O veículo é monitorado e o criminoso pode ser preso em flagrante.

Mas ainda que na teoria pareça muito fácil, a prática mostra que poucos desses casos são denunciados. Principalmente quando consideramos as estatísticas. O Dossiê Mulher 2015 trouxe, pela primeira vez, estatísticas de assédio sexual e importunação ofensiva ao pudor. O estudo revelou que a dita importunação acontece normalmente em locais públicos, é feita por desconhecidos, e suas maiores vítimas são menores de 14 anos (45,1%). De todos esses, somente dois casos chegaram até a mídia. Importante lembrar que mais de 90% dos seres humanos que são vítimas do crime são mulheres.

A última pesquisa de satisfação feita pelo Datafolha e encomendada pelo consórcio no ano passado, nem sequer citou o tema abuso sexual e também mostrou que a maior insatisfação dos usuários (69%) é a falta de comodidade. E sabemos que falta de comodidade se traduz em superlotação dos ônibus e estações – o prato cheio para assediadores tirarem vantagem de mulheres.

Procurada, a assessoria do consórcio assumiu que a pesquisa não aborda o tema do assédio, mas que, em maio, funcionários do BRT Rio participaram do treinamento Sexual Harassment Appropriate Response Program – SHARP (Programa para respostas adequadas em relação ao assédio sexual), promovido pelo Banco Mundial, e que deve pensar campanhas para as redes sociais.

Seria preciso que o mesmo ímpeto e dinheiro que têm sido usados nas campanhas olímpicas fossem investidos para educar os passageiros contra a cultura do estupro e do assédio. Outros pontos importantes são evitar a superlotação, criar ouvidorias e aumentar o número de guardas e motoristas mulheres, para que as passageiras sejam encorajadas a denunciar. Só assim o BRT será, de fato, um legado que não se derrete na praia para as mulheres.

* Ana Paula Lisboa tem 28 anos, é a mais velha de quatro irmãos, filha de dois pretos. Moradora do Complexo da Maré, Zona Norte do Rio.  Escritora, publicou contos e poesias em coletâneas nacionais e internacionais como a “Estrelas Vagabundas”, “26 novos autores da FLUPP” (Festa Literária das Periferias), “Eu me chamo Rio” e na “Je suis Favela”. Em 2014 recebeu o 1º Premio Carolina de Jesus, dado a pessoas que tiveram suas vidas mudadas pela Literatura. Desde 2012 faz parte da equipe de coordenação da Agência de Redes para Juventude, projeto que tem como missão mudar a relação da cidade com a juventude de favela. E em 2016 passou a escrever para a revista feminista AzMina e para o Segundo Caderno do jornal O Globo.

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