Reflexões de uma favelada sobre a vitória de Rafaela Silva
Colaboração para o UOL
Os amigos da Cidade de Deus, narradores de timeline, me serviram desde cedo para contar orgulhosos da menina nascida e criada na comunidade, Rafaela Silva, desta vez lutando ao lado de casa, já que o Parque Olímpico fica a poucos quilômetros dali. Eu perdi a luta final ao vivo, só me dei conta do momento histórico depois que todas as redes sociais foram cobertas por enxurradas de lágrimas e declarações de amor valorosas. Tudo ia bem, até que ela chegou: a meritocracia.
Eu e boa parte da minha geração que cresceu nas favelas e subúrbios cariocas somos frutos de projetos sociais. O boom das ONGs aconteceu principalmente depois das chacinas de Vigário Geral e Candelária (não é à toa a Pira estar acesa por lá) e trouxe projetos que tentavam trazer a inserção social de crianças e adolescentes através, principalmente, de preparação para o mundo do trabalho, da arte e do esporte.
Era o clássico: "Bota os meninos para fazer alguma coisa, pra não ficar na rua fazendo besteira". Assim surgiram nomes como os do projeto Dançando Pra Não Dançar e o sonho de toda mãe preta de ter uma filha como bailarina do Municipal. Mas quantas mães realizaram esse sonho?
Conto tudo isso porque Rafaela é a "história perfeita", a própria encarnação da Jornada do Herói. Nascida e criada na Cidade de Deus, começou a lutar ainda criança, foi desclassificada nas Olímpiadas de Londres e ganha o ouro olímpico lutando em casa – competindo nas semifinais com a mesma adversária de 2012. É ou não é roteiro de O Grande Dragão Branco? E que maravilha ela ser isso tudo e muito mais!
O problema é que o mérito faz as pessoas crerem, falsamente, que basta ser trabalhador, lutador, dedicado e inteligente para chegar onde Rafaela chegou. "Basta um pouquinho mais de suor". Quando, na verdade, a questão maior é que é necessário um esforço descomunal para chegar a lugares que alguns poucos alcançam, muitas vezes sem suor algum. Rafaela é brilhante, mas muitos de nós, tão brilhantes quanto ela, ficamos pelo caminho por conta de balas perdidas, falta de financiamento, violência policial e racismo. Não basta mérito, é preciso sorte também.
E quando se fala de uma mulher negra, essa questão é ainda mais profunda, já que nós somos as que mais morremos vítimas de assassinato, as que mais apanhamos, as que temos muitas vezes o trabalho doméstico como a única alternativa, e não o esporte.
Festejamos Rafaela, choramos com ela e sua família, seus amigos, mas não nos esquecemos dos outros que ficaram pelo caminho. Não nos esquecemos do racismo que ela sofreu em 2012, e mais ainda do que ela sofre todos os dias.
Rafaela deveria voltar para casa ovacionada, passear de carro aberto pelas ruas da Cidade de Deus, afinal, ela estava há poucos minutos do lugar onde cresceu. Mas isso não foi possível, desde sábado a comunidade sofre com intensos tiroteios. Cidade de Deus é ouro, e é chumbo.
* Ana Paula Lisboa tem 27 anos, é a mais velha de quatro irmãos, filha de dois pretos. Moradora do Complexo da Maré, Zona Norte do Rio, faz parte nesse território do Coletivo Palafita, agência e produtora com foco na arte e cultura das favelas, além de ser repórter d’AzMina. Formada em Letras e escritora desde os 14 anos, publicou contos e poesias em coletâneas nacionais e internacionais como a “Estrelas Vagabundas”, “26 novos autores da FLUPP” (Festa Literária das Periferias), “Eu me chamo Rio” e na “Je suis Favela”. Em 2014 recebeu o 1º Premio Carolina de Jesus, dado a pessoas que tiveram suas vidas mudadas pela Literatura. Desde 2012 faz parte da equipe de coordenação da Agência de Redes para Juventude, projeto que tem como missão mudar a relação da cidade com a juventude de favela
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL