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Prostituição e feminismo podem se aliar nestas Olimpíadas

Ezra Shaw/Getty Images
Fogos de artifício formam anéis olímpicos na abertura da Rio-2016. imagem: Ezra Shaw/Getty Images

Monique Prada Colaboração para o UOL

Há poucos dias, Letícia Sabatella, ao passar por um grupo de manifestantes favoráveis ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff, foi violentamente agredida. Dentre outros xingamentos, o mais pesado deles: puta. A atriz registrou em vídeo as chocantes agressões e uma campanha virtual identificou seus agressores.

Letícia Sabatella, ao contrário de mim e de milhões de mulheres mundo afora, não exerce o trabalho sexual. Para entendermos por que motivo Letícia foi xingada de puta precisamos recorrer a uma explicação mais ampla, portanto.

O que é uma puta?

Puta é toda aquela mulher que, de algum modo, foge ao controle do patriarcado. Não importa se cobra por sexo, se governa um país, se usa saias curtas, se dirige uma empresa ou apenas existe. O estigma de puta não tem a ver com o fato de algumas mulheres cobrarem por sexo. É, em verdade, fator essencial para manter a estabilidade do sistema. NADA pode ser mais ameaçador e ofensivo a uma mulher que ter a sua imagem associada a de uma puta.

Hoje, o estigma foi reforçado por uma mulher. Eloísa Samy, advogada, conhecida por seu papel ativo nos protestos de 2013, é aquela que pede policiamento ostensivo na repressão à prostituição nas ruas do Rio de Janeiro em época de Olimpíadas. Segundo ela, “não se pode admitir que um evento olímpico, que preza o bem estar das pessoas com tão nobres ideais, se preste a servir a uma causa tão mesquinha”, causa esta que seria a prostituição.

Eloísa, certamente mais do que eu, sabe pelo bem estar de quais pessoas se costuma prezar em período de megaeventos. Que populações são as mais afetadas em nome destes tão nobres ideais. Na Copa do Mundo de 2014, em nome desta mesma causa que ela hoje invoca, mais de 400 prostitutas tiveram, em Niterói, seus locais de trabalho invadidos, numa ação que em tese serviria para apreender drogas e punir cafetões. Da noite para o dia, mães de família tiveram seus poucos bens apreendidos, ficaram sem o seu sustento e de seus filhos. Muitas delas foram roubadas e estupradas, numa ação que teve pouco destaque – eram apenas prostitutas, afinal. Não foram encontradas menores em situação de exploração sexual nem drogas no local. Esta situação até hoje não teve solução.

O feminismo encarcerador de Samy não é todo o feminismo. O feminismo é amplo e nós, prostitutas, dizemos: somos, sim, mulheres trabalhadoras e FEMINISTAS.

Admito que feministas como Samy possam ser bem intencionadas, mas parecem não se dar conta de que jogar a força policial para cima de populações já marginalizadas, em especial mulheres, ao invés de solucionar, cria ainda mais problemas. Em nome do bem estar moral (sim), esquecem que incentivar o empoderamento das prostitutas e aliar-se a elas é o único caminho para combater o que dizem querer combater. Com esta política de segregação, tudo o que se consegue é alimentar um ciclo de exploração, violência e exclusão que se diz querer combater.

Se existem mulheres, e são muitas, exercendo atividades precárias – e a prostituição é apenas uma dentre tantas – por conta da miséria, é com a miséria que se tem que acabar. Políticas de encarceramento massivo aumentam, e não diminuem, a miséria. A maior causa de encarceramento feminino hoje é o tráfico de drogas – o aumento das políticas de repressão ao tráfico aliado à criminalização da pobreza nos levou a este resultado. Políticas estatais de aumento à repressão ao trabalho sexual terão resultados similares.

O feminismo radical encarcerador está defendo princípios da bancada evangélica. Tal feminismo defende o abolicionismo da prostituição segundo o modelo nórdico, implantado na Suécia em 1999, amplamente criticado pelas prostitutas locais e aparentemente ineficaz no sentido de extinguir a prostituição – constatação minha, já que estamos em 2016 e ainda existem prostitutas atuando na Suécia, eu mesma tenho lido algumas.

Pois bem: proposta similar ao modelo nórdico já tramita no congresso brasileiro. É o PL 377\2011, de autoria do pastor deputado João Campos, declaradamente inspirado no modelo sueco e em consonância com o que tem defendido feministas desta vertente. Ainda que nenhuma feminista tenha sido chamada a debater com o pastor, o texto da lei é claro. Mais do que um ataque, a comparação dos posicionamentos defendidos pelo feminismo agora dito materialista aos posicionamentos defendidos pela bancada evangélica é um alerta que deveria ser levado a sério, em especial neste período de duro retrocesso. O aumento da repressão estatal é escandaloso e escancarado, pessoas sendo retiradas de estádios e presas por protestarem conta um governo ilegítimo, e o que estou vendo são vertentes do feminismo legitimando essa repressão através da guerra moral contra mulheres que cobram por sexo.

O grande ponto talvez seja óbvio demais para que consigamos levá-lo em conta. Enquanto pessoas que não exercem o trabalho sexual debatem qual seria o melhor meio de extingui-lo, mulheres, muitas delas com famílias, lutam nas ruas por seu sustento diário. Deixar decisões sobre repressão ou proteção ao trabalho sexual a pessoas para as quais as consequências disso não tem impacto real em suas vidas é um ato de imensa irresponsabilidade em relação às mulheres que se valem desta atividade para sobreviver.

* Monique Prada é mulher, mãe, trabalhadora sexual e feminista. Atualmente é presidenta da CUTS - Central Única de Trabalhadoras e Trabalhadores Sexuais, e co-editora do projeto MundoInvisivel.org

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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