Olimpíadas 2016

Adeus Rio-2016

Satiro Sodre/SSPress

Sem fôlego

Como o esporte sufocou Mirella e a fez desistir da Olimpíada

Fábio Aleixo Do UOL, em São Paulo
Satiro Sodre/SSPress

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Pânico acaba com o sonho de uma atleta

A jovem Mirella tem 21 anos e vive seu auge físico e técnico no polo aquático. Mas ela não estava feliz com o que fazia e os rumos de sua vida. Se dopava para entrar no avião, tinha momentos de choro e medo. Sofrendo de Síndrome do Pânico - um mal que atinge 4% da população mundial -, resolveu abrir mão da seleção, na qual era titular absoluta, e desistir do sonho de jogar a Olimpíada de 2016 em seu país. Um sonho construído desde os 13 anos, quando passou a integrar o time nacional. Treinar todos os dias em dois períodos era um martírio para uma das atletas mais talentosas desta nova geração.

Hoje, quatro meses após tomar a decisão mais difícil de sua vida, Mirella se diz muito mais feliz e aliviada. Está podendo curtir a sua juventude como nunca fez antes. Conseguiu não largar totalmente o esporte. No último fim de semana disputou duas partidas do Troféu Olga Pinciroli, no Rio de Janeiro. Foram seus primeiros jogos oficiais desde o término do Pan de Toronto, em julho, quando ajudou o time nacional a levar o bronze. Mas agora enxerga o esporte como um lazer, e não mais como uma obrigação.

Em depoimento ao UOL Esporte, Mirella contou o seu sofrimento.

Arquivoo pessoal

Problemas começaram com os medos de morar fora

"Em 2014, eu me mudei para o Havaí para estudar na University of Hawaii [Universidade do Havai, Estados Unidos] e jogar polo aquático. Havia sido contemplada com uma bolsa de estudos. No Havaí, eu passei seis meses morando com uma menina que não gostava de mim. Ela nem era do meu time de polo aquático. A gente não se dava bem. Depois, fui morar com uma menina que era a minha melhor amiga. Mas, já no fim deste primeiro ano lá, eu comecei a me sentir muito mal, não entendia o que estava acontecendo comigo.

Me sentia presa, de uma maneira que nunca havia me sentido, quase tudo me apavorava. Precisava de todas as maneiras voltar ao Brasil para ficar perto da minha família. Esta amiga e mais dois brasileiros que faziam natação eram tudo o que eu tinha. Eles me deram apoio nos momentos de dificuldade, me carregaram. Mas eu precisava voltar."

A mãe Maria Paula também relata que sofreu de longe com os problemas vividos pela filha. “Muitas pessoas têm a ideia do Havaí como um paraíso. Claro que é um lugar muito bom para se viajar, mas para morar foi muito complicado para a Mirella, ela não se adaptou a estar em uma ilha no meio do nada. Vira e mexe tem alarme de terremoto, tsunami. Muitas vezes, ela estava na universidade e disparava o alarme. Tinha de ficar lá, sem poder sair. Daqui era uma grande agonia saber disso".

Satiro Sodre/SSPress

"Eu tinha dificuldade para pegar meu carro e ir ao treino"

Mirella continua: “Voltei ao Brasil [no fim de 2014] e as coisas continuavam muito difícil para mim. Resolvi começar um tratamento para ver o que era. Estava desenvolvendo Síndrome do Pânico. Eu tinha medo de ficar sozinha, era difícil para treinar com a seleção. Não porque eu não gostasse de treinar, mas simplesmente porque não conseguia. Eu chorava e tinha dificuldade para pegar meu carro e ir ao treino.

E tinha pressão de todo o lado. Pressão do dia a dia de treinos, e também com meus estudos. Estava fazendo Publicidade no Mackenzie. Estava difícil. As coisas pioravam quando tinha de viajar para competições, eu tinha medo de avião. Para conseguir viajar, tinha de me dopar, tomar remédio tarja preta, coisa forte mesmo. Era muito tenso.

Quando acordava no meio do voo começava a chorar. Era ruim para mim, para as minhas companheiras de time. Horrível para todos que estavam ao meu redor. Mas resolvi seguir em frente. Sempre fui muito guerreira. Treinei muito para ir ao Pan [Jogos Pan-Americanos, disputados em Toronto, em julho de 2015] e fui.

Mas o Pan foi uma competição muito longa, tive de ficar muito tempo fora de casa, com muita pressão. Tive algumas pequenas crises, mas no geral foi bom. Gostava do ambiente. Também falavam que eu era uma das musas da delegação brasileira. Isso de maneira alguma me incomodava. Para mim, estava tudo bem”.

O psicólogo Gustavo Korte, pós-graduado na área esportiva e que cursou doutorado na Universidade de Jyvaskala (FIN), diz que os sintomas de Mirella são muito comuns a pessoas que sofrem deste mal.  “A síndrome pode começar devido à pressão que a pessoa é submetida e ela não saber como lidar com a situação. As coisas começam a fugir da controle e tudo passa a virar uma ameaça no cotidiano. Cria-se um medo, que depois vira pânico. Isso começa a influenciar no raciocínio. A pessoa não se vê mais competente para fazer nada”, explica.

 

Como era estressante a rotina de Mirella

  • Quase 35 horas de treinos por semana

    A seleção faz de nove a 11 sessões de treino por semana, com folgas sempre nas tardes de sábado e aos domingos.

  • Muito tempo dentro da água

    As atividades na piscina variam entre duas e três horas em cada sessão, dependendo das necessidades do treinador.

  • E também tem a musculação

    As atividades na academia também são muito puxadas, podendo variar entre 60 e 90 minutos. Elas não são realizadas todos os dias.

  • Viagens por todo o planeta

    Em 2015, Mirella fez mais de cinco viagens internacionais para treinos e competições. Da América do Norte à Àsia, passando pela Europa.

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A hora de dizer adeus à Olimpíada

“Quando voltei do Pan, eu tive uma das piores crises. E na mesma semana a seleção ia embarcar para Kazan [Rússia] para a disputa do Mundial. Mas vi que ali era o momento de dizer chega. Não dava mais, eu não estava bem. Não tinha mais como empurrar com a barriga. Era hora de parar, cuidar da minha saúde. Foi uma decisão muito difícil de ser tomada, afinal eu estava desde os 13 anos de idade na seleção. Neste tempo, joguei dois Campeonatos Mundiais, em Xangai-2011 e Barcelona-2013, e participei de dois Pans. A decisão sobre pedir ou não dispensa foi uma briga interna que travei comigo mesma por mais de um mês, antes mesmo do Pan.

Comunicar esta decisão aos meus pais foi muito difícil, pois eles sempre me apoiaram e quiseram me ver em uma Olimpíada, ainda mais no Brasil. Ficaram super tristes, mas entenderam. Então, eu conversei com o técnico da seleção [o canadense Pat Oaten] e expliquei o que estava acontecendo comigo. Ele foi muito legal e entendeu bem. Disse para mim que as portas da seleção sempre seguiriam abertas.

Depois do Mundial, quando a seleção voltou da Rússia, ele me chamou de novo para a seleção e três meninas da equipe tentaram me fazer voltar. Como eu vi que meus pais estavam tristes, pensei em forçar para chegar na Olimpíada. Mas deu uma semana de treinos e eu disse que não tinha como voltar. Neste momento não quero estar na seleção e mesmo que quisesse já não daria mais tempo de estar na Olimpíada. A seleção está treinando forte e eu estou completamente fora.

Quem sabe em 2020? Nunca vou dizer nunca, mas não tenho vontade alguma”.
 

O apoio de dentro do polo

A Mirella sempre foi amiga de todas as jogadoras, se dava bem com todo mundo no grupo. Sabíamos de algumas crises que ela tinha e tentávamos ajudá-la como podíamos para ela seguir em frente. Ela fará muita falta para a seleção, porque é talentosa, uma ótima chutadora. Era uma peça muito importante no nosso time

Izabella Chiappini

, Jogadora da seleção de polo aquático

Ela é uma menina muito alegre, meiga e comunicativa dentro do grupo. Nos últimos meses antes de deixar a seleção teve mais crises, mas sempre estávamos por perto para dar força. A Mirella é muito querida, mas tomou a decisão que era melhor para ela. Temos de entender e respeitar. O ritmo da seleção é mesmo muito puxado

Marina Canetti

, Jogadora da seleção de polo aquático

A cobrança é muita alta, estamos lidando com atletas profissionais. Sem contar que atletas têm quase vida de cigana, com muitas viagens. Quando a Mirella tomou a decisão, eu conversei com ela e com a mãe. Nós da CBDA sempre prestamos todo tipo de apoio à atleta. É uma pena, pois é uma jogadora que fará falta

Paulo Rogério Rocha

, Coordenador de seleções do polo aquático

Arquivo pessoal

A volta por cima: terapia e vida sem pressão

"Hoje eu continuo jogando polo aquático pelo Paulistano [clube em São Paulo], mas é uma coisa bem mais tranquila, nada a ver com a seleção onde você não pode faltar um dia e a rotina é absurdamente dura. Lá só preciso ir três vezes por semana. Não tem a mesma cobrança. Também sigo com a minha terapia. No começo eram três vezes por semana. Agora, são duas. São sessões de uma hora e meia com a psicóloga. Além disso, sigo tomando remédios para ficar bem.

Mas o melhor de tudo é que estou sem fazer nada, podendo descansar, ficar em casa com a minha família e fazer muitas coisas que não tive oportunidade de fazer durante a minha adolescência. Não tive uma vida normal. A psicóloga diz que eu deixei de ser criança e virei adulta sem passar pela adolescência, e que isso contribuiu para a síndrome. Eu só estudava, treinava, viajava e jogava. Então é tão bom não ter obrigações.

Eu sinto muita saudade da faculdade e voltarei no começo do ano que vem. Estou no terceiro semestre de Publicidade e faltam cinco para me formar. Vai ser muito legal. Na verdade, só tranquei mesmo a faculdade pois até o meio do ano eu pensava em me dedicar apenas à seleção. Mas agora vou me focar nos estudos".

Montagem sobre arquivo pessoal

Pela lente de Mirella

Como seguir em frente agora

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

A fotografia como carreira

"Uma grande paixão minha é a fotografia. Meus pais me ajudaram a comprar uns equipamentos e comecei a fazer fotos de uns eventos para umas amigas. Nem quero fotografar nada de esporte, sabe. Já estou um pouco saturada. Gosto mesmo de fazer fotos da natureza, de paisagens. No próximo ano quero fazer um curso, aprender técnicas, ter um certificado".

Satiro Sodre/SSPress Satiro Sodre/SSPress

Jogar polo agora só por prazer

"Voltar a jogar no último fim de semana e foi bem legal. Estava com saudade de jogar livre, sem pressão, sem aquelas cobranças e obrigações. Meu time, o Paulistano, é ótimo, todas as meninas são muito amigas. Foi gostoso, fiquei feliz demais. Ganhamos os dois jogos e eu fiz dois gols. Ainda é difícil entrar na piscina por causa da síndrome que desenvolvi. Não é tão natural como era antes. Fiquei com pânico de piscina, mas minhas amigas me ajudaram muito. Foi muito legal ter ajudado a equipe. No ano que vem só devo ver a Olimpíada se meu irmão (Gustavo Coutinho, que defende a seleção masculina de polo) jogar. Caso contrário, não quero saber de nada, vou me desconectar. Nem TV eu vou ver".

Arquivo Pessoal Arquivo Pessoal

A coragem de falar dos problemas

"Resolvi contar a minha história porque sei de muitas pessoas que sofrem do mesmo problema e, às vezes, não tem coragem de falar. Espero poder contribuir de alguma maneira, pois tenho certeza que não sou a única nesta situação". "Queremos ajudar as pessoas. Depois que a Mirella foi diagnosticada com a Síndrome do Pânico, comecei a ler e estudar mais e vi quantos passam por isso. É uma doença da modernidade. E eu também sofria por causa da minha filha. Cada vez que ia levá-la para o aeroporto para alguma viagem dava um aperto no coração, voltava chorando para casa. Mas posso dizer que a minha filha é uma guerreira e fez tudo pelo sonho olímpico. Treinava, fazia faculdade e ia a todas às viagens", diz a mãe Maria Paula.

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