UOL Olimpíadas 2008 UOL em Pequim
 

Dalai é estrela olímpica até Jogos começarem

Rodrigo Bertolotto

Em Pequim

Para achar em Pequim o Dalai Lama é preciso se dirigir à avenida Yonghe Gong, número 12, passar vários pavilhões e em silêncio entrar no último hall. Lá está ele, de madeira e inofensivo, com sua vestimenta ritual dourada. A cabeça da estátua de quatro metros ostenta o chapéu em ponta vertical, que lembra capacete de herói japonês de TV, mas é exclusivo do guia espiritual do Tibete.

Já o de carne e osso, aquele que ganhou o Nobel da Paz de 1989 e o ator hollywoodiano Richard Gere, continuará no papel de maior estrela dos Jogos Olímpicos até a cerimônia de abertura, no dia 8 de agosto. Porém, vai brilhar pela ausência na capital chinesa, afinal, ele parece tão letal para o governo de Pequim quanto a poluição para os esportistas.

Exilado na Índia desde a década de 50, quando as tropas comunistas entraram no Tibete e encerraram o regime feudal que existia por lá (os lavradores eram servos e a perspectiva era de 30 anos de vida), a 14ª encarnação do “Buda vivo” é apontada pelo governo chinês como o vértice dos tumultos na região de março passado e dos protestos por onde passa a tocha olímpica, pedindo mais autonomia ou até a independência da região (clique aqui para dar sua opinião sobre o tema).

Parece que nem no Templo Lama, o mais espetacular complexo religioso de Pequim, a paz reina. No pavilhão dos dalais, um dos monges fica no encalço de quem tenta fazer fotos das esculturas, o que não acontece nas outras edificações. “No picture, no picture”, repete a quem insiste.

Outro religioso, sentado do lado de fora e calçando sob a túnica um tênis Li Ning (marca que imita a Nike e a Adidas), conta que metade dos visitantes é turista, a outra é formada por fiéis. “Vem aqui muitas estrelas nacionais do tênis de mesa, futebol e basquete, mas eu não vou dar o nome”, diz o monge que também não revela como se chama.

Flávio Florido/UOL

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Mesmo com a placa pedindo para não jogar moedas na fonte, um garoto gasta várias moedas para encestar em um buraco no meio dela atrás de um desejo a ser realizado. Outras pessoas lançam cédulas de yuan, o que é especialmente irônico, afinal, o dinheiro local estampa a face de Mao Tse-tung, o líder que tentou aplicar o ateísmo no país.

A queima de incenso, item essencial nas orações, cria mais uma nuvem na atmosfera poluída da capital. De tão densa, a combustão dentro do incensário se assemelha a uma pira olímpica.

Mas o clima introspectivo acaba interrompido por um toque de celular, uma versão digitalizada de um pop chinês. O dono do telefone está no meio da prece e não pode interromper sua comunicação direta com Buda. Quase um minuto de barulho depois, ele puxa a outra ligação: “vei” (alô, em mandarim). “Quando falamos com Buda, temos que terminar, e só depois cuidar de nossos afazeres”, explica nossa intérprete, a senhorita Yünyü Fang.

No altar, as oferendas são, em geral, frutas e flores. Mas no meio delas se destaca um pacote com embalagem da Disneylândia de Hong Kong. É o sinal dos tempos: as figuras de Mickey e Pato Donald no meio de estátuas de Dalai Lama.

Enquanto nas últimas décadas o budismo ganhou corações no Ocidente junto com a onda “new age”, na própria China ele ganhou o aval do regime autoritário, em uma postura bem diferente do que aconteceu durante a Revolução Cultural (1966-76), quando vários templos foram destruídos – o Templo Lama, construído no século 17, só ficou ileso por intervenção do premiê Zhou Enlai.

E esse racha de budismos tibetanos, entre o exilado na Índia e o chancelado pela China, ficou patente quando se teve de escolher o Panchen Lama, a segunda mais alta divindade da religião. Os dois lados apontaram garotos diferentes que teriam reencarnado Buda. O jovem apontado pelo Dalai Lama logo sumiu de vista, com rumores que teria sido detido.

Já aquele com a chancela oficial participa hoje em dia de todos os eventos promovidos pela Administração Estatal de Assuntos Religiosos, o departamento do governo chinês que supervisiona questões de fé. Livros escritos por ele estão à venda na entrada do Templo Lama. E não há uma remota chance de ver por lá um exemplar de “A Arte da Felicidade”, best-seller do Dalai Lama.

Por seu lado, o líder tibetano mantém conversas reservadas com Pequim, que tem certo interesse que o religioso de 72 anos volte antes de desencarnar para que a China seja o lugar onde surja o novo Dalai Lama – a burocracia do governo dirigido pelo ateu Partido Comunista já estabeleceu uma lei que o próximo “Buda vivo” terá de nascer em território chinês.

Nos recentes tumultos em Lhasa, quando a capital tibetana viu vários mortos entre os imigrantes chineses e também presenciou a posterior repressão com mão pesada das tropas de Pequim, o Dalai Lama criticou tanto a ação quanto a reação, afinal, ele ganhou o Nobel por sua defesa da não-violência. De qualquer forma, a questão tibetana se somou de vez aos temas críticos (como os problemas dos direitos humanos e a liberdade de imprensa) de quem advoga um boicote aos Jogos Olímpicos ou, pelo menos, a cerimônia de abertura. E, por enquanto, Pequim não quer ver o Dalai Lama nem pintado de dourado. A não ser o da escultura no templo.

Publicado no dia 18 de abril de 2008

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