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De "vício burguês" e comida, cão vira indústria

Rodrigo Bertolotto

Em Pequim

Os pequineses estavam na moda nos anos 70, mas hoje praticamente desapareceram dos quintais e garagens do Brasil. Por seu lado, em Pequim, lugar de origem desses cãezinhos de focinho chato, eles estão reaparecendo nas ruas, após décadas em que a Revolução Comunista de 1949 refreou o hábito de ter animais de estimação, rotulando isso como um “capricho capitalista”.

A explicação para os dois fenômenos antagônicos lá e cá é uma só: a indústria dos “pets” promove o consumo de bichos, mas também tira e põe raças de evidência como se fossem marcas de carro ou grifes de roupa. Saíram de moda o doberman, o pastor alemão e o pequinês, substituídos por rottweilers, golden retrievers e pugs.

Já a China, com a abertura econômica, vive um boom nesse nicho, apesar das restrições do governo. A partir de 2006, quando o país viveu um surto de raiva, a China, no lugar de promover uma campanha de vacinação (só 3% dos animais receberam injeção), adotou o limite de um cão por família. E ainda criou uma taxa para dono. Dependendo da cidade, o registro do "auau" pode custar até R$ 1.000, um luxo para os padrões do país.

Por isso, ver o comerciante Zhao Shunyou passeando com dois pequineses pelo centro da capital chinesa parece a mais pura excentricidade. “Depois que uma filha cresceu e saiu de casa, esses animaizinhos servem de companhia para mim e minha mulher”, conta ele.

Flávio Florido/UOL

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Um dos cães foi registrado por sua única filha, driblando o limite de um por família. Essa restrição é a mesma solução, aliás, que a China encontrou para a explosão populacional a partir dos anos 70, criando atualmente um país em que as pessoas não têm irmãos de sangue.

Os cachorros nunca tiveram a vida fácil que têm agora na China. Tanto no sul quanto no norte do país, são vistos tradicionalmente como alimento, fonte de proteína. Em Pequim é difícil encontrar um restaurante que sirva carne de cachorro. Mas na região sul ainda hoje 15 milhões de cães são consumidos anualmente.

O país mais populoso do mundo passou por vários períodos de fome em sua história. O último aconteceu no final dos anos 50, quando o regime de Mao Tse-tung criou um plano de coletivizar o campo e impulsionar a indústria chamado de “Grande Salto Adiante”. O grande esforço, algumas medidas erradas e desastres ecológicos causaram a morte de pelo menos de 20 milhões pessoas. Na época, foram registrados até casos de canibalismo.

Outro período de escassez aconteceu no século 19, quando o território chinês estava dividido por potências européias. Foi em 1861, depois da queda de Pequim e a destruição do Palácio de Verão pelas mãos das tropas franco-inglesas, na chamada Guerra do Ópio, que generais britânicos levaram como espólio de guerra alguns pequineses. Um deles foi oferecido de presente para a rainha Vitória.

Enquanto a capital chinesa vivia conflitos, com a queda do Império e a ascensão dos comunistas, cães eram misturados com outras raças nos salões da Europa. Mesmo assim, os pequineses mantiveram as características originais, com a mordedura prognata e a pelagem vasta, lisa e castanha. O aspecto leonino e a cara negra lhe valeram uma lenda sobre sua origem: seria um filhote do casamento de um leão com uma macaca.

Com os “pet shops” que se multiplicam pelas esquinas atualmente, Pequim teve que reimportar os autênticos pequineses, que foram espalhados pelo mundo como efeito colateral da ânsia ocidental de vender ópio aos chineses. Como ironia histórica, são os chineses hoje que vendem de tudo para o mundo, mas tem de comprar seu legítimo cachorrinho.

Publicado no dia 16 de abril de 2008

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