UOL Olimpíadas 2008 Reportagens Especiais
 
No norte de Pequim, galinhas dão o tom do meio rural

No norte de Pequim, galinhas dão o tom do meio rural

Fora do eixo, interior da China não vê os Jogos

20/08/2008 - 16h08

Pobre, China rural não vê nem pela TV as Olimpíadas

Rodrigo Bertolotto
Em Pequim (China)

Existe uma China que mal está assistindo às Olimpíadas. No campo, o dinheiro de um crescimento de quase 10% anuais durante as últimas três décadas é uma lenda distante, muitas vezes contada pelo agricultor que migrou para as cidades nos últimos 25 anos - como fizeram mais de 250 milhões de pessoas, o que já é bem mais do que a população brasileira. Em algumas partes, o lado rural do país descobre com muitas horas de atraso o que a China Olímpica expõe ao resto do mundo em tempo real, em diversos ângulos.

"Aqui só pega um canal da província de Heibei, que não transmite os Jogos. Assistimos ao que aconteceu no dia no telejornal da noite", conta a menina Zhang Xia, brincando com a irmã na frente de um milharal, sem saber que o resto do país inteiro está comovido com a lesão do corredor Liu Xiang, ídolo local que não pôde lutar pelo bicampeonato olímpico nos 110 m com barreiras.

O local é a vila de Huai Bei, 70 quilômetros ao norte do centro de Pequim. A área é classificada mais exatamente como um qiong, denominação para os bairros miseráveis. As placas e os outdoors olímpicos desaparecem ao sair da auto-estrada, que segue até um trecho da turística Grande Muralha. Feito o desvio, o que surge diante dos olhos é o campo chinês, onde, pelas estatísticas, vivem ainda 58% da população, ou seja, 737 milhões de pessoas.

Nem sinal das maravilhas arquitetônicas de cimento, aço e vidro de Pequim. A rua é de terra e esburacada. Galinhas ciscam e patos caminham na frente das casas de alvenaria barata, divididas por hortas. Sob as árvores, camas esperam o descanso dos roceiros após o almoço. No mercado, camponeses estiram sobre jornais e lonas sua produção: pêssegos, ameixas, uvas, pimentas e tomates.

O nível de consumo beira a subsistência, mas alguns fazem outras funções para complementar o orçamento. Uns trabalham em lotações piratas, levando gente para subempregos na área urbanizada. Outros, como Wang Hai, estão em pequenos afazeres, como o de sapateiro. "Tenho que trabalhar durante o dia. Fica impossível assistir às competições. Quando termino, ligo para ver o que aconteceu", afirma Wang, consertando o solado de um tênis.

Segundo a ONU, 200 milhões de chineses vivem abaixo da linha de pobreza, ou seja, com menos de US$ 1 ao dia. Boa parte deles migrará para as cidades até 2020: o cálculo é que 400 milhões se desloquem do campo para as metrópoles, e 400 pequenas localidades estão programadas para virar pólos industriais, turísticos ou comerciais - o governo central não quer Pequim e Xangai mais super-povoadas do que já são, com medo de que aflorem tensões sociais e políticas.

Não deve ser o caso de Huai Bei, por sua proximidade com a capital chinesa e atual sede olímpica. Contudo, o qiong deve ser dissolvido nos próximos meses para dar lugar a um campus universitário. Saem os casebres, entram os prédios para formar profissionais dessa nova China.

O senhor Chen Weiyan, 81, está sentado na rua ao lado do cachorro. "Não sei nada dos Jogos. Escuto e vejo muito mal", se queixa. O vizinho cuida de um pomar vestindo uma camiseta com uma bola de futebol e a bandeira brasileira, mas pouco sabe das duas coisas (muito menos que o Brasil caiu por 3 a 0 para a Argentina).

No salão de beleza local, a TV passa um DVD de um dramalhão bem ao gosto das clientes. "Não entendo e não me interesso por esporte", corta a cabeleireira Chun Yun, atrás da cortina de plástico amarelada que serve de porta para seu estabelecimento. E volta para sua novela.

O sinal da rede estatal CCTV, com seus 16 canais abertos, não chega bem à região. A CCTV5, que tem só programação esportiva, nem pensar nas casas humildes. Os moradores mais abonados, com comércio à beira da rodovia para a Muralha, conseguem captar e acompanhar. Em um restaurante para viajantes, um aparelho de TV mostra ao vivo o que está acontecendo no Parque Olímpico, com prédios que parecem saídos de outro planeta e outro tempo para os habitantes daquele vilarejo. Entretanto, é o mesmo país, que assiste ao abismo entre a riqueza urbana e a pobreza rural aumentar cada vez mais.

Compartilhe: