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Na meca da pirataria, só sobrou a churrascaria

Na meca da pirataria, só sobrou a churrascaria

Pequim ainda apresenta alguns resquícios 'brasileiros'; veja álbum

19/08/2008 - 15h21

Pirataria sino-brasileira não vinga, e fábrica de orelhão e guaraná clonados fecha

Rodrigo Bertolotto
Em Pequim (China)

Desde 1987, o empresário Gerson Dong divide sua vida entre Pequim e São Paulo. "Vai ao Brasil. Copia alguma coisa e volta. Só vai para copiar", brinca sua funcionária Roseli Damasceno, que se mudou para a China em 2002 para ajudar na promoção do guaraná Lida, cuja latinha era um decalque do famoso rótulo da Antárctica, só mudando as cores.

Na época, a subdivisão da empresa que fabricava telefones públicos estava para fechar, e o senhor Dong buscava outra fonte de lucro, pirateando de novo um produto brasileiro. Afinal, os orelhões laranjas (similares ao antigo da privatizada Telesp) não davam mais dinheiro. Ele já tinha espalhado pelas ruas de Pequim centenas deles, ainda hoje muito visíveis nos subúrbios, o que dá uma sensação de déjà-vu no brasileiro que visita a cidade-sede dos Jogos Olímpicos.

Hoje, o único negócio dele que continua em Pequim é a churrascaria Bacana Brasil, que fica ao lado da fábrica. De promoter, a maranhense Roseli virou a cozinheira e hostess de lá, enquanto outro brasileiro convocado para a "operação guaraná" acabou como churrasqueiro. Elivan Silva tinha que acertar a proporção de pó importado, caramelo e água gasificada. "Não conhecia nada daquilo. Depois, se desse intoxicação em um consumidor, o culpado era eu. Pedi para sair", disse o recifense que antes trabalhara em um supermercado na Liberdade, o tradicional bairro oriental de São Paulo.

De lembrança do guaraná genérico, só sobraram a última caixa no depósito (manchada e sem uma latinha dentro) e um pôster amarelado na parede (com imagem do Corcovado e slogan em caracteres chineses: "Uma bebida natural que vem da floresta do Brasil. Você deve experimentar"). Outro pôster foi parar na janela do banheiro do restaurante, improvisando a falta de vidro.

Gerson Dong ( Dong Xuan-hong é o nome original em chinês), 60, não esboça nenhuma saudade do produto. "O chinês não se acostumou com o sabor. Aqui, as pessoas gostam de chá", diz em um português balbuciado de quem viveu cinco anos no Brasil e todo ano passa pelo menos um mês entre sua casa em Pirituba e suas lojas na Liberdade.

Também não quer se recordar da produção de orelhões. "A China não precisa mais disso. Todo mundo só quer celular, aparelhos sem fio. A tecnologia a cabo não dá mais dinheiro", fala o empresário. Se não restou uma latinha para contar a história, as cabines telefônicas encalhadas revelam essa história, empilhadas, empoeiradas, cheias de teias de aranha e vegetação na entrada da fábrica. "Isso é sucata, não vou guardar nada, vai tudo para a reciclagem", sentencia o empresário. As peças poderiam entrar para um museu da pirataria made in China.

Agora, Dong se dedica a montar celulares em fábrica no sul da China e a tocar uma fazenda de tabaco na Argentina. Em São Paulo, Dong diz lucrar com aluguel comercial, encontrar seus amigos e o filho que tem com uma brasileira. Já o restaurante em Pequim serve para reuniões com seus amigos dentro do governo e do empresariado - se fosse pela frequência normal, estaria também fechado.

"Ele tem muito contato com os grandes do país. Outro dia veio um ministro aqui com a comitiva cheia de segurança. Fechou o restaurante para eles", conta Roseli. As fotos na parede de seu escritório confirmam isso. Uma flagra Dong cumprimentando militares. Outra retrata um encontro na sede do todo-poderoso PCC (Partido Comunista Chinês), com a presença até do atual presidente, Hu Jintao. Ele ostenta também uma série de retratos seus, feitos por, nada mais nada menos, que o badalado cineasta Zhang Yimou, diretor de filmes como "Lanternas Vermelhas" e "Hero", outro queridinho do regime de Pequim. Revelador é saber que Yimou foi o responsável pela parte artística da abertura da Olimpíada, para a qual Dong foi um convidado.

Nascido na província de Henan, Dong é o retrato do empreendedor chinês. Engenheiro de telecomunicações desde que se formou na Universidade de Pequim, ele esteve sempre procurando um nicho de mercado para lucrar, mas para isso precisa de uma rede de influências, afinal, o governo é o principal cliente e parceiro nesse capitalismo chinês. Para conseguir um contrato, como o de pontuar as esquinas pequinesas com orelhões alaranjados, é preciso vários conchavos e festins, como aqueles que ele costuma promover no restaurante, com muita proteína vinda da vizinha Mongólia, mas assada ao estilo gaúcho, por churrasqueiros de chapéu e lenço no pescoço.

Outra característica da iniciativa privada da terceira economia mundial é a apropriação de marcas e patentes estrangeiras, com a conivência das multinacionais, que deixam as estatais chinesas piratearam seus modelos, afinal, não querem irritar o governo central, que permite o acesso ao mercado de 1,3 bilhão de trabalhadores e consumidores.

Pois Dong escolheu copiar dois símbolos brasileiros, mas o negócio não deu certo. "Aquele guaraná era pior que purgante", sentencia o brasileiro Humberto Monteiro, que mora em Pequim há cinco anos. Roseli conta que o produto desandou quando os brasileiros saíram da linha de produção da Lida Beverages, que acabou fechando em 2006. Não adiantou nem colocar foto de Lucélia Santos (a eterna Escrava Isaura para os chineses) com as latinhas do "gualaná", como os chineses pronunciam o refresco.

Três anos antes era a vez da Lida Comunicaton Devices trocar os telefones públicos laranjas pelos celulares. A pirataria chinesa gera um prejuízo de US$ 4 bilhões para o Brasil, cifra pequena em relação aos U$ 84 bilhões anuais para empresas dos EUA, Europa e Japão. Mas Dong, por enquanto, deixou de contribuir com esse rombo das falsificações. Pelo menos para o Brasil, agora ele fabrica telefones portáteis "inspirados" nos modelos da Nokia, Samsung e Motorola.


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