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Garotos são trabalhados no esporte que é mania nacional

Garotos são trabalhados no esporte que é mania nacional

O tênis de mesa está em todas as partes em Pequim; veja as fotos

18/08/2008 - 15h37

China convoca crianças de cinco anos para manter hegemonia nas mesas

Rodrigo Bertolotto
Em Pequim (China)

Minha tradutora chinesa me guiou em meio a um conjunto habitacional e apontou para a placa na frente de uma escadaria que levava ao subsolo. Tinha combinado com ela que me levasse a um clube do esporte nacional da China, o "table tennis" (do mandarim das entrevistas para o português dos meus textos, há o intermediário inglês para me comunicar com a intérprete).

Na sala esfumaçada, só se via três mesas de bilhar e nenhum barulho de bolinha quicando. Pensei: os caras são tão fissurados com a modalidade que devem praticar até em porões. "Cadê o tênis de mesa?", perguntei. "Mas isso não é tênis de mesa?", me respondeu a assistente local. Depois da explicação, ela foi categórica: "Por que você não falou que queria um lugar de pingue-pongue?"

A culpa pela tarde perdida de trabalho não foi toda causada pela falha de vocabulário dela. A responsabilidade também é dos dirigentes que trocaram o sonoro nome de "pingpang" (como se fala na China) e "pingue-pongue" (no Brasil) para dar uma denominação mais pomposa e esportiva para a recreação que surgiu na Inglaterra vitoriana como brincadeira de sobremesa.

Sanado o erro, no dia seguinte estávamos dentro de um típico clube do esporte no qual a China tem a hegemonia total nas Olimpíadas, com 16 dos 20 ouros distribuídos entre Seul-1988 (quando entrou no programa) até Atenas-2004, além de ter garantido os dois ouros já decididos em Pequim-2008 (equipes masculinas e femininas).

O país é tão viciado que até cartazes de "não pisem na grama" em parques são em formato da raquete pequena. Tão obcecado que, quando quis encerrar o período de isolamento político na década de 70, o governo de Mao Tsé-tung estendeu a mão para o de Richard Nixon aplicando a "diplomacia do tênis de mesa", com atletas norte-americanos sendo convidados a jogar no território comunista.

É tamanho o poderio nas mesas que o país até exporta rivais. No time dos EUA, os quatro são sino-americanos. Coréia do Sul, Japão, Cingapura, Argentina, Ucrânia, Austrália, Luxemburgo, Espanha, Holanda, Áustria, Polônia e Congo estão entre os destinos de astros chineses que não conseguiram lugar no sexteto nacional. O êxodo forçou a federação internacional ITTF a determinar que a mudança de nacionalidade só pode acontecer até os 21 anos de idade.

"A China tem milhares de praticantes. Desde os seis anos observamos o menino que tem velocidade de reação e aprende com facilidade. Tendo vocação, é só aplicar nosso sistema de treino e ele se destaca", conta o segredo o técnico Lu Bin, que trabalha com meninada no clube Ji Men, em Pequim.

Andar no clube é como pisar em ovos, e várias bolinhas pelo chão acabam inutilizadas. Já a caixa com dezenas delas mais parece um depósito de ovos. E a China decidiu em sua Olimpíada caseira colocar seus ovos em vários cestos. O ditado vem a calhar, afinal, o país está colhendo medalhas até em esportes em que não tem tradição (como o remo e o tênis sem mesa) e disparando no quadro geral diante dos EUA.

Com movimentos coordenados de pés e braços, um garotinho de cinco anos, Zou Wei Xiang, é mais baixo que a altura de 91 centímetros da rede em relação ao piso. Mesmo assim treina duas horas diárias. É seu primeiro treino sem usar um tablado onde sobe para ver a quadra adversária. O calor de 33 graus faz o moleque tirar a camiseta e depois se abanar com a raquete, gesto repetido por adultos e crianças no clube.

As mesas que ficam ao sol estão totalmente abandonadas no pátio, enquanto as 20 do galpão coberto são disputadíssimas. Além das aulas para crianças, damas e cavalheiros da vizinhança alugam por 20 yuans (R$ 5) a hora, enquanto uma sala vip é reservada para quem pagar 80 yuans. "Muitos executivos vêm depois do serviço aqui. Preferem a sala reservada porque é mais silenciosa. Eles podem conversar e ouvir a própria bolinha. No salão principal é muita bagunça", relata o gerente do clube, Ma Fan.

Para aumentar o barulho, o técnico grita instruções para seus aprendizes: "olha a bolinha", "atenção no movimento", "capricha na batida". A pequena Lin Yue, 6, se mostra mais distraída que minha intérprete. Seu técnico tem que toda hora corrigir sua empunhadura, enquanto ela fica com o olhar perdido batendo nas bolinhas que vem para seu campo.

Os mais treinados deslizam os pés no piso como se dançassem um twist, em movimento combinado com os braços. Os garotos fazem fila para rebater a bola de um dos técnicos, enquanto os pais também estão enfileirados esperando o fim do treino.

Ao fundo, um pôster com a imagem de ídolos como Liu Guozheng, Ma Lin, Wang Hao e Wang Nan, alguns com aparição em carne e osso ali para estimular as novas gerações, hoje muito atraídos pelo basquete e sua cara mais visível, o gigante Yao Ming. Mas Liang Geliang, o ex-campeão mundial e hoje professor de educação física da Universidade de Pequim, não se preocupa com essa concorrência. "Poucos chineses são altos para o basquete. O físico daqui é perfeito para o tênis de mesa, onde o mais importante não é ser forte, mas ser esperto e ter frieza na hora da decisão."

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