Sede olímpica tem 90 mil diplomados
Rodrigo Bertolotto
Em Pequim (China)
Se ele pudesse recuperar a visão, gostaria de assistir à partida da China na final do basquete olímpico. Mas ele trocaria isso por ver de novo o rosto de seus pais, o que nunca mais voltará a acontecer, afinal, seu problema é cerebral. Ma Lian Jie sofreu um acidente de carro em 2006 e seus dois olhos e um ouvido ficaram sem função. Ele já fazia massagens, mas, depois da fatalidade, entrou para um seleto grupo dessa técnica da medicina tradicional chinesa: os massagistas cegos.
Como seus colegas de clínica, escuta as Olimpíadas pela televisão, mas leva a vantagem de poder imaginar o que está se passando tanto na tela bem à frente quanto na quadra a poucos quarteirões de distância. Como ficou cego já adulto, ele viu quase tudo na vida. "Conheço os movimentos, as quadras, as bolas, os uniformes. Quem é cego de nascença entende o conceito de cada esporte, mas não consegue visualizar o que está acontecendo", relata Ma.
É o caso da garota Fu Hong Yun. "Já me explicaram que o pingue-pongue consiste em jogar uma bolinha em cima de uma mesa, e perde quem manda a bola longe", resume o esporte mais popular da China.
Ao final do dia, porém, esses trabalhadores manuais fazem suas Paraolimpíadas privadas. Os seis massagistas correm em um parque vizinho, acompanhados de um guia. Depois, fazem uma sessão de musculação. "Para agüentar a exigência física do expediente é preciso treinar", explica Ma, que jogava basquete e futebol antes de perder a visão.
Na pausa entre um cliente e outro, o grupo se reúne em volta da TV da sala de espera. Eles batem palma enquanto o narrador se entusiasma com a levantadora chinesa ganhando o ouro. Fu vê só um vulto na tela.
A aptidão para lidar com nervos, músculos e órgãos é da mesma proporção que a dificuldade para se movimentar, chutando móveis, atropelando cadeiras e batendo nas maçanetas. "Quando chega paciente novo, é freqüente a gente se chocar com ele. Com o tempo, eles aprendem a se posicionar na clínica", conta Fu.
Os massagistas cegos são muito apreciados e valorizados no país, onde há 90 mil diplomados nos três níveis de especialização, com diplomas dados por universidades da técnica tradicional da China. Só Pequim conta com mais de 1.000 deficientes trabalhando, mostrando que já virou nicho de mercado graças aos 1.000 yuans (R$ 250) de média salarial, o que pode ser considerado um rendimento médio no país de moeda desvalorizada.
Ainda afeito a planos qüinqüenais, o governo comunista estipulou no último deles que diplomará até 2010 mais 50 mil massagistas cegos, dando uma forma de ganhar dinheiro a eles, afinal, o país não conta com um sistema de previdência privada, então, velhos e incapacitados têm que contar com a solidariedade alheia ou se virar para sobreviver.
Houve também uma corrida burocrática, licenciando a toque de caixa os estabelecimentos devido ao aumento de casas que prometiam massagem na fachada, mas ofereciam serviços sexuais em seu interior. As autoridades de Pequim retiraram as prostitutas das ruas e fecharam inferninhos nestes dias olímpicos. Mas ainda é freqüente a abordagem de senhoritas nos pontos turísticos da cidade a palavra-chave em chinglês: "massadi, massadi."
A massagem, que a China exportou para o mundo, também é um dos cartões de visita aos estrangeiros olímpicos. Jornalistas, dirigentes e atletas são massageados de graça em dependências olímpicas.
A clínica localizada na avenida Juchang, visitada pelo UOL, é só uma entre as 217 registradas na capital chinesa. Dentro dela, Ma conta que melhorou muito como massagista após a perda da visão. "Atuo pelas regras e procedimentos, mas, sem ver, toco melhor o corpo e a alma das pessoas. Posso sentir os maus pensamentos que elas têm quando chegam e como tudo escapa quando aperto certos pontos", diz o massagista de 24 anos.
Todos dizem que vão torcer com fervor para a China ganhar também as Paraolimpíadas, que acontecem em setembro nos mesmos locais que sua versão mais famosa. Fu diz até que, quando se sente triste, lembra do caso de Ping Ya Li, a primeira chinesa a ganhar um ouro nos Jogos Paraolímpicos, no salto em distância em 1984. "Ela é um exemplo de superação, mostrando que os cegos podem fazer muitas coisas, e bem", se entusiasma.