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Prato com carne de cachorro servido em Pequim

Prato com carne de cachorro servido em Pequim

Veja fotos da saga atrás da carne de cachorro

04/08/2008 - 11h30

Pequim não respeita restrição ao consumo de carne de cachorro

Rodrigo Bertolotto
Em Pequim (China)

Uma das máximas do jornalismo é "se um cachorro morde um homem, isso não é notícia. Já se um homem morder um cachorro, isso sim é uma reportagem". E se um jornalista morder um cachorro ensopado com salsinha e pimentão? O pessoal do UOL Bichos deve achar uma cachorrada, mas achei por bem verificar se estava funcionando o banimento dos pratos caninos em Pequim durante a Olimpíada, como a mídia internacional anunciou.

Vários internautas mostraram indignação em relação à reportagem sobre a falta de restrição ao consumo de carne canina na China.
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O governo chinês tomou várias medidas para evitar qualquer arranhão na imagem que o país quer passar ao mundo e sabe da sensibilidade ocidental para o costume comum na China e Coréia de criar cães para comer - na região de Cantão, no sul do país-sede dos Jogos, milhares dos chamados "melhores amigos do homem" vão parar na panela.

Como já comi outros animais do tipo que tive como bichinhos de estimação em casa (como coelho e peixe), fui sentir que sabor tinha um au-au. Como também já provei bichos que raramente vão para os pratos, como cavalo, camelo e canguru, tinha um histórico de bizarrices gastronômicas.

No caminho para o primeiro restaurante, perguntei para minha intérprete pequinesa sobre sua experiência no assunto. "Já comi duas ou três vezes, mas faz muito tempo. Não lembro muito bem do gosto", revelou Giu Junnan, que nasceu em Haerbin, na fronteira com a Coréia do Norte, onde o costume é forte. Ela começou a falar que o cachorro é um dos 12 signos do horóscopo chinês. "Meu pai nasceu no ano do cão, mas ele tem muito medo deles."

O taxista que nos levava entrou na conversa. "Comi muito cachorro na infância. Minha família era muito pobre. Às vezes era a única carne que tinha à disposição", confessou o motorista que cresceu nos subúrbios de Pequim.

O papo é interrompido pelo toque do celular. Um colega do UOL, também em Pequim, me liga para dizer que está indo almoçar. "Não quer que eu leve uma quentinha com cachorro prá você?", brinco. Ele faz expressão de nojo do outro lado da linha.

Chegamos ao restaurante que anuncia o acepipe canino em seu cardápio. Num bairro comercial, cheio de prédios de escritórios imponentes desse país que adotou de vez o capitalismo. Avistamos o letreiro do restaurante. E do lado, para surpresa, uma filial da grife norte-americana de cafeterias Starbuck´s Coffee. Já imaginava tirar o gosto do almoço com um muffin.

As mesas estão quase todas ocupadas, com muitos estrangeiros entre os comensais. Ao pedir o prato no cardápio com direito a foto ilustrativa e tudo, o garçom foi logo avisando: "Isso é comida para dar força no inverno. No verão, não servimos.. Se fosse conseguir em algum lugar, vai ser carne estragada."

Tínhamos outros locais na lista. Um telefonema para confirmar que serviriam cachorro, e corremos para o segundo restaurante, em uma viela de bairro residencial. Chegando lá, o cozinheiro tinha ido, afinal, era 14h30. Mas a garçonete avisou que reabririam às 16h para o jantar (na China, essa refeição é feita das 17h às 19h30).

Porém, vendo que o gringo tinha feito fotos do cardápio e do letreiro de entrada que anunciava "carne de cachorro", o dono do local inventou que tinha acabado o estoque.

Já saindo, uma cena simbólica chamou a atenção: um lulu da Pomerânia, todo altivo na coleira de seu dono, deu uma mijadinha na porta do restaurante. Pareceu um protesto modesto em defesa de seus iguais abatidos. Um ato de oposição tão discreto como devem ser todos na China autoritária.

Também contrariados, ligamos para o terceiro restaurante. Agora tinha que dar certo, afinal, era um estabelecimento norte-coreano.. Mas, com tanto tempo perdido, teríamos que esperar abrir para jantar.

Novo táxi, e esperamos em um sofá enquanto preparavam as mesas do Pyongyang Haendanghina. De repente, todas as garçonetes, vestida com roupas típicas, se perfilaram em colunas. Durante 20 minutos, em posição militar, elas ouviram as instruções do chefe. Dava impressão que ele estava falando que o governo proibiu a venda de cachorro para estrangeiros. Porém, não era nada disso: ele distribuía recomendações de como servir.

Finalmente, pedi um cachorro desfiado com pimentão e salsinha. A intérprete foi de sopa de pepino do mar. Quase não acreditei quando a foto do prato que estava no cardápio se mostrou verdadeira em minha mesa, com dois palitinhos para abocanhar o cãozinho.

Contudo, dei duas mordiscadas no cãozinho e me veio uma ânsia. Tinha tanto condimento, tanta pimenta que poderia ser carne humana que não repararia. A tradutora assumiu o prato, enquanto preferi encarar o pepino do mar ensopado, um pouco menos intragável que o lulu.

A intérprete se revoltou com minha recusa. "Está delicioso, você não quer mais? É muito desperdício. Coma mais", ordenou. Ensaiei abocanhar de novo, mas não consegui. Larguei os pauzinhos.

Não sei se foi o molho ou a culpa ocidental. Saindo do restaurante, até os fiapos que estacionaram nos dentes me davam nojo. Queria chegar ao hotel e escovar os dentes logo. Deve ser porque o meu prato que pedi tinha a seguinte tradução em inglês no cardápio: "Korea Dog Complex". Estava eu com o tal "complexo do cachorro coreano".

Prometi para mim mesmo, só voltar a comer um cachorro-quente nas ruas de São Paulo. Em alguma dessas carrocinhas ambulantes de dogão, com muita mostarda e nenhum latido.

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